tão perto e tão longe
Ele liga-me quase todos os dias e eu, embora contrariada e sem nada para lhe dizer, atendo sempre. Nunca dura mais do que meros minutos, às vezes penso que se passaram horas e qual não é o meu espanto quando o visor do telemóvel marca um minuto e pouco mais.
Pergunta-me como correu o meu dia. "Bem", respondo, sem me alongar. Sem acrescentar nada mais. Não porque não exista nada para contar, quase sempre existem peripécias no meu dia dignas de escrutínio, mas simplesmente não tenho vontade de as partilhar com ele. Sinto-me cansada só de pensar que teria de lhe contar detalhes e responder a perguntas. E mais cansada fico de imaginar que me tornará a fazer as mesmas perguntas, vezes sem conta, porque nunca regista as respostas que lhe dou. Como se alguma lesão cerebral lhe tivesse comido a capacidade de memorização.
Às vezes, sinto, do outro lado da linha, a sua frustração. A sensação de que nada entre nós flui. Que alguma coisa se perdeu pelo caminho. Sinto-me culpada por não lhe conseguir dar mais de mim, mas entre a culpa por não o fazer e o cansaço e falta vontade de o fazer, os últimos vencem o primeiro. A culpa começa a tornar-se um sentimento conhecido e sou capaz de lidar com ele; já a falta de vontade é algo que ainda tenho dificuldades em domar. Sobretudo nestes últimos tempos, em que me tenho comportado como uma criança mimada, recusando-me a fazer qualquer tipo de fretes, por muito egoísta que possa parecer.
Por vezes, sinto que gostaria que eu lhe fizesse questões sobre o seu dia. Sobre como estão as coisas. Não faço, porque não tenho verdadeiro interesse em saber. Responder-me-ia e eu nada faria com essa informação. É-me indiferente se o dia lhe correu bem ou mal. Claro que gosto de saber que está bem, mas não sinto aquela ânsia de o socorrer caso as coisas estejam menos bem. Não fico acordada a pensar em soluções como outrora fiquei. Isso foi numa outra vida e eu já não sou essa pessoa.
Vivemos debaixo do mesmo tecto e apenas nos vemos por escassos minutos todos os dias. De manhã, poderia contar cinco minutos, à noite por vezes nem isso. São múltiplas as vezes que o ouço colocar a chave na porta e apago a luz do meu quarto, fingindo já estar a dormir. Ele abre a porta encostada do meu quarto, espreita e, vendo-me a dormir, torna a fechar a porta. O que ele não sabe é que a escuridão que encontra espelha não só a ausência de luz do quarto, mas também o que vai dentro de mim.
Vivemos na mesma casa, mas agimos como dois companheiros de casa cujas vidas se desenrolam a ritmos completamente opostos, mal se vendo e encontrando. Parece difícil acreditar que partilhamos os mesmos espaços e usamos os mesmos objetos nas nossas rotinas diárias.
Parece ainda mais inacreditável pensar que, em tempos, fomos próximos. Eu orgulhava-me tanto dele e da nossa relação. Por ele ser tão presente na minha vida, desde sempre. Por ele ser tão aberto comigo e eu com ele. Lembro-me de adorar as viagens de carro em que íamos os dois a conversar, enquanto a minha mãe e irmã dormiam nos bancos traseiros. O lugar da frente era sempre meu, porque era a única que nunca cedia ao sono e lhe fazia companhia.
Ele era o meu herói. Pela sua história de vida, pela sua garra e determinação. A sua energia, o seu foco nas soluções em vez de colocar as mãos à cabeça e desesperar. O positivismo e a vontade de viver. Amarrado à vida com força como se temesse que, a cada instante, esta lhe pudesse fugir das mãos.
Hoje, estes retalhos são meros fragmentos de um passado extinto. Debato-me entre sentimentos de raiva, fúria, desprezo e irritação só de ouvir a sua voz. E, depois, regressa a culpa. O esmagamento que se abate sobre mim por sentir isto em relação ao meu pai. Depois, surge a tristeza.
A tristeza consome-me. Por isso, evito-a. Penso que ele não tem o direito de me colocar triste. Quase sempre resulta. Mas há dias, por vezes momentos, em que ela se escapa e se infiltra nas fissuras que começam a aparecer nesta armadura desengonçada que construi. E instala-se, bem quieta, junto ao meu coração. E dói.
Dói estar no quarto ao lado, no lugar da mesa junto ao dele, e, ainda assim, sentir-me tão distante. Senti-lo cá e eu além. Ele que, ainda não há muito tempo, era o meu pai adorado e querido. E hoje não sei quem ele é e ainda não sei para onde foi a pessoa que eu julgava conhecer.