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the old soul girl

the old soul girl

31
Ago23

till the end

girl

Avó, hoje é o teu dia. Sempre será. Estejas onde estiveres. Esta data é tua. Não te posso dizer que me lembro especialmente de ti neste dia, porque mentiria. Lembro-me de ti um sem número de vezes, nas mais pequenas circunstâncias da vida e do quotidiano. Quando passo fora da tua antiga casa, cenário de tantas memórias felizes. Foi o palco de uma infância bem vivida, cheia de amor, carinho, mimo, colo. Quando me vejo ao espelho e encontro na forma do meu corpo a tua, a mesma curvatura, a mesma largura. Quando fecho os olhos e te vejo diante de mim, com os braços abertos para me acolheres num abraço apertado. Quando penso na vida e quando penso na morte. Até na tua ausência continuaste a ensinar-me e foi contigo que aprendi o que é morrer, o que é sofrer pela morte de alguém que tanto se ama e o que é recuperar desse lugar escuro e sombrio, que é o luto.

Demorei a processar a tua partida, avó. Tu deverás saber, porque se existe algo mais do que isto, se existe algo além, longe daqui eu sei que continuaste a acompanhar-me com atenção e dedicação. E, por isso, és conhecedora de como somente um ano depois, no lugar mais inesperado e da forma mais surpreendente, fui capaz de chorar a tua morte. Ainda me lembro do desespero das minhas lágrimas e da aflição da minha respiração. Tudo tão cru, tão presente, como se tivesse acontecido no dia anterior. Ensinaste-me que se sobrevive à dor, que é possível conviver com uma saudade que não finda, apenas se multiplica, à medida que o tempo vai passando. Hoje consigo recordar-te como sempre desejei. Feliz, terna, forte, corajosa. Só existe paz, serenidade e amor quando me lembro de ti. 

Adoro-te, avó. Adoro tudo o que me deste, adoro tudo o que representas para mim, adoro cada pedacinho de tempo que tivemos oportunidade de viver juntas. Continuas a ser o meu porto seguro, quando fecho os olhos e regresso ao lugar onde fomos tão felizes.

Hoje celebro a tua vida, avó. E celebro a minha, porque enquanto existir, tu existes também. Vives comigo e em mim, nas minhas memórias mais puras e felizes. Vives nos meus exercícios de gratidão, onde és presença constante. Vives nos meus momentos mais difíceis, como farol, símbolo de força, de coragem e determinação. Vives na pessoa que fui, na pessoa que sou e farás sempre parte da pessoa que um dia serei. 

Até ao meu último dia, este dia é teu e eu aqui estou para o celebrar. 

14
Ago23

the art of mourning

girl

Alerta para um post advindo de um emaranhado de fios mentais, de um novelo de ideias dispersas e enroladas umas nas outras. Esta é uma tentativa de desfazer nós e esticar linhas de pensamentos. 

Estou há horas a tentar escrever alguma coisa decente. Penso, escrevo, apago. Torno a pensar, torno a escrever, torno a apagar. Vejo o desânimo apoderar-se de mim, sinto o cansaço nas minhas pálpebras, a desmotivação a instalar-se na minha postura corporal. Ouço os meus pensamentos, presto-lhes a devida atenção. Eles dizem-me que não tenho jeito nenhum para isto. Que não consigo elaborar e trabalhar esta ideia que me surgiu. Que esta desorganização mental é real e por mais que tente arrumá-la, há sempre alguma reflexão que fica de fora e obriga a repensar toda a ordem até então criada. Que trabalhar a uma segunda-feira, numa véspera de feriado deveria ser proibido e que, por esse facto, me posso entregar a uma dose de letargia. Que me apetece muito criar coisas, investir, inventar. Que isso é difícil e não sei por onde começar. Que quero a mudança, mas será que estou disposta a pagar o preço que ela custa? Será que é um bom investimento? Que me sinto aborrecida. E isto não é apenas um pensamento que me ocorre, é também toda uma emoção e sentimento em si mesmo. Que me sinto triste. E cansada. Que existem várias fontes de cansaço na minha vida, de diferente origem, mas que se completam e fortalecem esta sensação de desfalecimento quotidiano. Que me sabe tão bem dormir e ler. Que em ambas as atividades me distancio de mim, deste estado de consciência e navego para outros mundos, outras realidades, outras pessoas e possibilidades. Que sinto fome. E que devo comprar um chocolate para aguentar até ao fim do dia, pois vai ser longo. Que não trabalhei quase nada e o dia já vai a meio, mas que também não em preocupo muito com isso. Que se lixe.

Não era sobre nada disto que queria escrever. Mas talvez não seja sobre o que quero, mas sobre o preciso de escrever. Quero escrever sobre livros, podcasts, música; mas preciso de escrever sobre as minhas dores e os meus pensamentos sobre elas.

Dou por mim a refletir sobre o conceito de luto e, inevitavelmente, sobre o de perda. Parece-me que andam de mãos dadas, a cara e a coroa da mesma moeda. Para cada perda tem de existir um luto. Mas há tantas formas de perda. A mais comum, e das mais assustadoras, é a perda de alguém que amamos. Mas existem outras que não exigem uma ausência física, o que não significa que não impliquem uma ausência. Há perdas de expectativas, de sonhos, de projetos. Há perdas de pedaços de nós, há perdas da totalidade de nós. Há perdas de rumo, de sentido, de propósito, de missão. E no meio destas perdas todas, há tanto luto por trabalhar. Sim, o luto é um trabalho. Duro, ingrato, escravo, controlador, precário. Um trabalho para o qual é difícil arranjar candidatos, por maiores e melhores que sejam as promessas de condições de trabalho. Lembram-se daquela expressão horrenda que estava inscrita nos portões dos campos de concentração nazis, O trabalho liberta? Naquele contexto e naqueles moldes, o trabalho não libertava, matava. Mas nesta minha linha de raciocínio condicional, se o luto é um trabalho e se o trabalho liberta, então o luto é um trabalho que liberta.

E é mesmo. Por mais que custe, por mais que demore, por mais que pareça não ter fim, o luto liberta-nos. E eu vejo-me neste compasso de espera, de indecisão, de avançar ou de me encolher perante este processo. De um lado, vejo as minhas perdas empilhadas, acumuladas umas atrás das outras. Perdas simples, simbólicas, essencialmente de expectativas que nem sabia que tinha criado. O próprio mecanismo de proteção de não criar expectativas advém de uma perda maior, que me convenceu que não se pode perder nada que não se possua em primeiro lugar. Claro que esta aprendizagem (não) brilhante foi feita num momento de desilusão, de estilhaços de sonhos e fantasias no chão. Mas pior do que perder um sonho, é perder todos pela perda da capacidade de sonhar. Durante muito tempo confiei que esta era uma boa estratégia, mas já não estou convicta disso. Sinto saudades de sonhar e, num plano mais amplo e abrangente, sinto saudades de mim, de um “eu” onde sonhar era um prazer.

As nossas perdas não trabalhadas, não choradas não se extinguem. Não evaporam. Apenas se sedimentam, formando várias camadas, umas em cima de outras, que vão causando erosão na nossa identidade e nas nossas relações, com os outros e com o mundo. É isto que vejo do outro lado. Existe uma expectativa e existe a realidade; quando ambas coincidem, maravilhoso, quando ambas se contrariam, é preciso chorar essa contrariedade. É preciso mastigar (não ruminar) as emoções que daí surgem e aceitar esta conclusão, encaixando-a na nossa história, na narrativa da qual somos autores. Às vezes este processo é rápido, outras vezes não. Às vezes é difícil olhar para as emoções com aceitação, é difícil estar com o desconforto que elas provocam. E não faz mal, porque isso também é, em si mesmo, um processo. Outras vezes, é difícil a aceitação. Não queríamos determinado desfecho, não queríamos escrever determinado capítulo. Não faz sentido na visão que pretendíamos construir. E, mais uma vez, está tudo bem. Porque é difícil desvincular de uma ideia, de um projeto, de uma vontade. Por mais lógico e racional que seja esse processo de desvinculação, há qualquer cola invisível que nos une àquela ideia, aquela perspetiva. Mudar de óculos, de lentes, requer um período de habituação, não é verdade?

São estes pensamentos que têm pairado na minha cabeça desde manhã. Sei que ainda não trabalhei esta ideia como gostaria, falta-me sustentação, falta-me limar as arestas. Mas o essencial está cá. A ideia central está lançada no mundo: tenho perdas para chorar. Tenho trabalho para fazer. Tenho de olhar para dentro e desembaciar as lentes, que estão ofuscadas pelo medo de sentir. Sim, medo de sentir. Durante muito tempo, fui refém deste medo. Medo de abraçar as emoções, sejam elas quais forem, com os dois braços abertos, de coração para coração. Medo de não ser capaz de as gerir, de elas me esmagarem em vez de me abraçarem. Medo de me paralisarem e me bloquearem. Nunca fizeram tanto sentido as palavras de Carl Jung: o que resiste, persiste. É preciso deixar fluir, seguir o rumo da corrente e não remar em direção oposta. Essa resistência vai criar mais entropia, vai bloquear o ritmo normal e saudável da vida.

O pontapé de saída está dado. Começar a “partir pedra” e desmontar este muro que construi entre mim e as perdas. Afinal, fazemos parte da mesma matéria, partilhamos o mesmo berço. Eu não sou as minhas perdas, mas elas fazem parte de mim. Da minha história.

E depois deste momento de escrita caótico e catártico, os pensamentos continuam presentes, mas eu apenas os observo e contemplo. Que bela atividade mental que para aqui vai.

16
Nov20

minha pequenina

girl

Já tentei escrever antes, mas não senti que os meus textos merecessem ver a luz da publicação e, assim, guardei-os na gaveta dos rascunhos, esse lugar espaçoso onde cabem todas as minhas ideias e emoções no seu estado mais bruto.
Hoje faz um mês que me despedi da minha amiga de quatro patinhas que, sem qualquer dúvida, significou mais para mim do que muita gente que por cá anda e alguma até do meu sangue. Faz um mês que tivemos de tomar a decisão de a deixar ir, de terminar com o seu sofrimento e lhe dar o descanso que ela tanto merecia. Mas, ainda que saibamos que foi a melhor decisão, isso não a tornou mais fácil. Pelo contrário, quando somos nós os autores das nossas escolhas, temos de enfrentar a realidade de que fomos nós que assim decidimos. Não foi o destino, a sorte ou o azar. Fomos nós e somente nós.
Foi um dia muito difícil, mas também era insuportável olhar para ela e ver como se arrastava, a dificuldade com que se erguia, a falta de apetite, a apatia, a perda de todas as funções e, no fim, a perda da sua personalidade enérgica. Só não se perdeu a sua mimalhice, porque era a cadela mais mimada e faminta de mimos que já conheci. Apesar de todas as dores, ainda era capaz de olhar para nós, tocar-nos com a sua patinha, como quem implora mais uma festinha pela cabeça, mais uma massagem pelo lombo.
Naquela sexta-feira, chorei até não conseguir mais. Doeu-me tudo e quando fechava os olhos, só conseguia ver aqueles dois olhinhos castanhos, ternurentos, cravados em mim. Sempre que pensava que aquela pequenina já cá não estava, que já só vivia na nossa memória, que se tinha esfumado num sopro, doía-me o coração e a alma.
Num rascunho escrito a 18/10, eu escrevia:

"Sempre que acontece alguma coisa que mexe comigo, penso "preciso de escrever sobre isto". Nem sempre o faço, mas sinto a vontade, não só para eternizar momentos, mas também para organizar o que vai dentro da minha cabeça. Nestes últimos tempos não tenho tido a maior disponibilidade do mundo para me sentar e dedicar-me a escrever, o que não significa que tenha pouca coisa em mente para organizar.
Este ano está a ser difícil para todos nós. É inegável. Estamos a viver uma situação digna de um guião de um filme de ficção científica ou terror, que jamais imaginamos ser possível. Ainda assim, e já após 7 meses de pandemia, nunca dei comigo a dizer "que ano horrível". Embora, como toda a gente, me sinta assustada, frustrada e cansada desta situação, nunca dei este ano como um ano perdido, que riscaria do meu calendário. Não só porque esta situação completamente atípica e nova me tem ensinado muito acerca da nossa forma de viver e estar, mas também porque este ano trouxe-me coisas positivas. No entanto, na semana passada vivi um acontecimento que me fará para sempre olhar para 2020 como um ano triste. 
Porque desde a semana passada, 2020 será sempre relembrado, entre outras memórias, como o ano em que me despedi da minha cadelinha, um dos seres mais puros que já conheci. Há pessoas que não compreendem os animais como algo mais que meros seres vivos, mas para mim, os animais valem tanto ou mais que algumas pessoas. Como a minha cadela, por exemplo, de quem gosto imensamente mais do que muitos seres humanos, alguns até da minha família. A minha cadela era da família, era do núcleo duro e forte, onde só entra quem é realmente especial e importante. 
Estava doente, muito e gravemente doente. Sei que a melhor decisão a tomar foi deixá-la partir e reencontrar o sossego e a paz que já não tinha há muito tempo. Eu sei disso tudo, acreditem. Mas por maior que seja a racionalidade e a lógica desse argumento, nada disso me consolou naquele dia em que me despedi dela para a deixar partir e nunca mais a tornar a ver. Foi um dos dias mais tristes da minha vida e uma das maiores perdas que já vivi. Gostava de conseguir escrever algo mais profundo, até mais bonito, acerca dela que, sem dúvida alguma, o merece, mas neste momento não me sinto capaz de o fazer. Porque quando me lembro que ela já não existe, que nunca mais a voltarei a ver, dói-me tudo. Toda e qualquer parte do meu corpo se contrai com a dor, quase sinto o meu coração a quebrar-se em mil estilhaços. Por isso, por mais que a escrita seja terapêutica para mim, ainda não consigo escrever tudo o que vai dentro de mim sobre este assunto. Porque tudo me faz confusão, a aceitação e a negação misturam-se, tenho flashes a todo o momento da última vez que a vi, a ferida ainda está aberta e cheia de sangue a jorrar por todo o lado."

Hoje, passado um mês, posso afirmar que aquele momento de despedida me trouxe uma paz e conforto que, no meio da tempestade, não consegui sentir, mas que, com o passar dos dias, encontrei. A oportunidade de nos despedirmos, de dizermos adeus, de olharmos, sentirmos, absorvermos uma pessoa, um animal, um lugar pela última vez é uma dádiva. Eu tive a oportunidade de me despedir da minha amiguinha, de a mimar até ser o momento final, de lhe dizer o quanto a amava e o quanto ela era incrível, espetacular e a melhor cadela que o mundo já teve oportunidade de conhecer. Hoje, quando penso nela, não sou invadida pelas imagens da despedida, mas antes por todos os momentos bons e maravilhosos que ela me proporcionou. Lembro-me da sua energia inesgotável, da forma como parecia que via Deus sempre que me via pegar na trela, porque sabia que ia passear, o modo como me perseguia pela casa, pois sabia que eu sou fácil e nunca era capaz de lhe negar miminhos. Lembro-me de como os almoços de domingo eram uma alegria para ela, com tanta gente à volta da mesa, sempre a dar-lhe comida. Até cheguei a descascar-lhe camarões! Lembro-me de como se empoleirava para comer os restos de gelado que já não conseguíamos comer e como os seus bigodes ficavam brancos, era um prazer indescritível. Lembro-me das suas orelhinhas levantadas quando nos ouvia chegar a casa e como corria ao nosso encontro. Ainda a procuro em todos os cantos da casa e do jardim, convencendo-me cada vez mais que a casa sempre foi mais dela do que nossa. Sinto saudades dela, nas mais pequenas coisas, mas o coração já não me dói com o desespero de a termos perdido. Ela faz parte de mim, sempre fará, e enquanto eu estiver viva, ela vive comigo e dentro de mim. 

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