the art of mourning
Alerta para um post advindo de um emaranhado de fios mentais, de um novelo de ideias dispersas e enroladas umas nas outras. Esta é uma tentativa de desfazer nós e esticar linhas de pensamentos.
Estou há horas a tentar escrever alguma coisa decente. Penso, escrevo, apago. Torno a pensar, torno a escrever, torno a apagar. Vejo o desânimo apoderar-se de mim, sinto o cansaço nas minhas pálpebras, a desmotivação a instalar-se na minha postura corporal. Ouço os meus pensamentos, presto-lhes a devida atenção. Eles dizem-me que não tenho jeito nenhum para isto. Que não consigo elaborar e trabalhar esta ideia que me surgiu. Que esta desorganização mental é real e por mais que tente arrumá-la, há sempre alguma reflexão que fica de fora e obriga a repensar toda a ordem até então criada. Que trabalhar a uma segunda-feira, numa véspera de feriado deveria ser proibido e que, por esse facto, me posso entregar a uma dose de letargia. Que me apetece muito criar coisas, investir, inventar. Que isso é difícil e não sei por onde começar. Que quero a mudança, mas será que estou disposta a pagar o preço que ela custa? Será que é um bom investimento? Que me sinto aborrecida. E isto não é apenas um pensamento que me ocorre, é também toda uma emoção e sentimento em si mesmo. Que me sinto triste. E cansada. Que existem várias fontes de cansaço na minha vida, de diferente origem, mas que se completam e fortalecem esta sensação de desfalecimento quotidiano. Que me sabe tão bem dormir e ler. Que em ambas as atividades me distancio de mim, deste estado de consciência e navego para outros mundos, outras realidades, outras pessoas e possibilidades. Que sinto fome. E que devo comprar um chocolate para aguentar até ao fim do dia, pois vai ser longo. Que não trabalhei quase nada e o dia já vai a meio, mas que também não em preocupo muito com isso. Que se lixe.
Não era sobre nada disto que queria escrever. Mas talvez não seja sobre o que quero, mas sobre o preciso de escrever. Quero escrever sobre livros, podcasts, música; mas preciso de escrever sobre as minhas dores e os meus pensamentos sobre elas.
Dou por mim a refletir sobre o conceito de luto e, inevitavelmente, sobre o de perda. Parece-me que andam de mãos dadas, a cara e a coroa da mesma moeda. Para cada perda tem de existir um luto. Mas há tantas formas de perda. A mais comum, e das mais assustadoras, é a perda de alguém que amamos. Mas existem outras que não exigem uma ausência física, o que não significa que não impliquem uma ausência. Há perdas de expectativas, de sonhos, de projetos. Há perdas de pedaços de nós, há perdas da totalidade de nós. Há perdas de rumo, de sentido, de propósito, de missão. E no meio destas perdas todas, há tanto luto por trabalhar. Sim, o luto é um trabalho. Duro, ingrato, escravo, controlador, precário. Um trabalho para o qual é difícil arranjar candidatos, por maiores e melhores que sejam as promessas de condições de trabalho. Lembram-se daquela expressão horrenda que estava inscrita nos portões dos campos de concentração nazis, O trabalho liberta? Naquele contexto e naqueles moldes, o trabalho não libertava, matava. Mas nesta minha linha de raciocínio condicional, se o luto é um trabalho e se o trabalho liberta, então o luto é um trabalho que liberta.
E é mesmo. Por mais que custe, por mais que demore, por mais que pareça não ter fim, o luto liberta-nos. E eu vejo-me neste compasso de espera, de indecisão, de avançar ou de me encolher perante este processo. De um lado, vejo as minhas perdas empilhadas, acumuladas umas atrás das outras. Perdas simples, simbólicas, essencialmente de expectativas que nem sabia que tinha criado. O próprio mecanismo de proteção de não criar expectativas advém de uma perda maior, que me convenceu que não se pode perder nada que não se possua em primeiro lugar. Claro que esta aprendizagem (não) brilhante foi feita num momento de desilusão, de estilhaços de sonhos e fantasias no chão. Mas pior do que perder um sonho, é perder todos pela perda da capacidade de sonhar. Durante muito tempo confiei que esta era uma boa estratégia, mas já não estou convicta disso. Sinto saudades de sonhar e, num plano mais amplo e abrangente, sinto saudades de mim, de um “eu” onde sonhar era um prazer.
As nossas perdas não trabalhadas, não choradas não se extinguem. Não evaporam. Apenas se sedimentam, formando várias camadas, umas em cima de outras, que vão causando erosão na nossa identidade e nas nossas relações, com os outros e com o mundo. É isto que vejo do outro lado. Existe uma expectativa e existe a realidade; quando ambas coincidem, maravilhoso, quando ambas se contrariam, é preciso chorar essa contrariedade. É preciso mastigar (não ruminar) as emoções que daí surgem e aceitar esta conclusão, encaixando-a na nossa história, na narrativa da qual somos autores. Às vezes este processo é rápido, outras vezes não. Às vezes é difícil olhar para as emoções com aceitação, é difícil estar com o desconforto que elas provocam. E não faz mal, porque isso também é, em si mesmo, um processo. Outras vezes, é difícil a aceitação. Não queríamos determinado desfecho, não queríamos escrever determinado capítulo. Não faz sentido na visão que pretendíamos construir. E, mais uma vez, está tudo bem. Porque é difícil desvincular de uma ideia, de um projeto, de uma vontade. Por mais lógico e racional que seja esse processo de desvinculação, há qualquer cola invisível que nos une àquela ideia, aquela perspetiva. Mudar de óculos, de lentes, requer um período de habituação, não é verdade?
São estes pensamentos que têm pairado na minha cabeça desde manhã. Sei que ainda não trabalhei esta ideia como gostaria, falta-me sustentação, falta-me limar as arestas. Mas o essencial está cá. A ideia central está lançada no mundo: tenho perdas para chorar. Tenho trabalho para fazer. Tenho de olhar para dentro e desembaciar as lentes, que estão ofuscadas pelo medo de sentir. Sim, medo de sentir. Durante muito tempo, fui refém deste medo. Medo de abraçar as emoções, sejam elas quais forem, com os dois braços abertos, de coração para coração. Medo de não ser capaz de as gerir, de elas me esmagarem em vez de me abraçarem. Medo de me paralisarem e me bloquearem. Nunca fizeram tanto sentido as palavras de Carl Jung: o que resiste, persiste. É preciso deixar fluir, seguir o rumo da corrente e não remar em direção oposta. Essa resistência vai criar mais entropia, vai bloquear o ritmo normal e saudável da vida.
O pontapé de saída está dado. Começar a “partir pedra” e desmontar este muro que construi entre mim e as perdas. Afinal, fazemos parte da mesma matéria, partilhamos o mesmo berço. Eu não sou as minhas perdas, mas elas fazem parte de mim. Da minha história.
E depois deste momento de escrita caótico e catártico, os pensamentos continuam presentes, mas eu apenas os observo e contemplo. Que bela atividade mental que para aqui vai.