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the old soul girl

the old soul girl

22
Nov19

rescaldo final

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Estando oficialmente terminado o desafio de 30 dias de escrita, posso fazer uma reflexão acerca do mesmo, como uma espécie de rescaldo. Em traços gerais, considero que o desafio foi concluído com sucesso porque escrevi acerca de todos os itens propostos, embora confesse que nem sempre o fiz no dia em que era suposto. Isto aconteceu quase sempre aos fins de semana, porque tento estar afastada do computador o máximo possível já que passo a semana em frente a um. E, admito, aconteceu também num item ou dois por falta de inspiração, precisando de mais tempo para escrever alguma coisa coerente. 

Comecei este desafio com o objetivo de fazer dele um exercício de escrita criativa. Inicialmente, a minha ideia era escrever ficção, usando como tema de inspiração os diferentes temas propostos. Queria explorar a minha imaginação e capacidade de escrever num registo completamente antipessoal, distanciando-me o máximo possível de mim e das minhas vivências. Como poderão já ter reparado, caso tenham acompanhado o desafio, isto nunca aconteceu. Todos os trinta textos foram escritos com base em experiências reais e um conjunto de sentimentos que me pertencem. 

Creio que falhei o meu objetivo porque, se inicialmente o desafio seria um exercício de escrita, rapidamente se transformou num exercício terapêutico. Eu precisava de escrever sobre uma data de coisas que me estavam a incomodar e a remoer cá dentro. E, curiosamente, a cada tema proposto, encontrava sempre um caminho até ao que precisava de escrever para me sentir melhor comigo mesma. Posso dizer que o que perdi em criatividade, ganhei em sanidade mental. Algumas gavetas da minha cabecinha ficaram melhor arrumadas depois de ter despejado tudo que estava dentro delas nos meus textos e lhes ter dado uma nova configuração. 

Outro aspeto de que me apercebi no decorrer do desafio foi de como a escrita pode ser um talento, mas que sem prática nunca poderá evoluir e tornar-se em algo realmente bom. Atenção, não quero ser mal interpretada, não me considero dotada nem penso em mim como uma escritora, mas a verdade é que escrever todos os dias tornou a minha escrita mais fluída e dinâmica. Muitos textos foram escritos em menos de 10 minutos, porque uma vez que me lançava às palavras, a magia acontecia e encontrava o meu ritmo rapidamente. Gostei desta sensação de estar a aprimorar a minha escrita e gostei ainda mais de ter algo que me obrigava a escrever todos os dias. 

Não posso deixar de referir, ainda no registo terapêutico, o bem que este desafio me fez. Na procura de inspiração para explorar os diferentes temas sugeridos, dei comigo a reviver memórias antigas, a vasculhar no meu sótão cerebral por recordações deliciosas, que me transportaram para outros tempos, em que fui muito feliz. Todos os textos escritos sobre a minha infância são exemplos claros destas viagens feitas ao passado que me aqueceram o coração. Cada item proposto fez-me pensar em experiências vividas e, ao fazê-lo, revivi-as. Nem sempre perdemos tempo a revisitar os melhores momentos do nosso passado e este desafio foi uma boa oportunidade para o fazer.

Gosto de me desafiar a experimentar coisas novas e, como tal, o saldo final desta experiência só pode ser positivo. Acho que até terei alguma dificuldade em saber sobre o que escrever, agora que já não tenho aquele auxiliar fantástico que me fazia focar num tema específico. Gostaria de tentar, no futuro, repetir um desafio deste género e aí sim, focar-me somente na escrita criativa. Mas percebi que precisava de mergulhar primeiro no meu mundo e só depois ir à conquista de outros, de explorar primeiro o real para depois ir à descoberta do fantástico. 

21
Nov19

uma metáfora

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Chega ao fim o desafio de 30 dias de escrita e termina de forma grandiosa: uma metáfora para a vida. Gostava, sinceramente, de escrever um texto à altura do desafio proposto para este último dia, mas receio que tal não vá acontecer. Por isso, vou apenas escrever aquilo que me vai na alma e me passou pela cabeça quando li o que era pedido para o 30º dia. 

Life is a gift. Experience is the beauty.

Esta deverá ser a metáfora mais fraquinha da história em termos literários, mas em termos práticos e reais é, para mim, a mais poderosa. Não sei se ando a atravessar uma espécie de crise existencial ou coisa parecida, mas penso frequentemente na vida. No milagre que tudo isto é. Sim, já vos tinha dito que eu faço parte da equipa de gente que o vê tudo como um milagre. Não interpretem estas palavras como uma questão religiosa, porque não é disso que se trata. Quando digo que concebo tudo como um milagre, é porque quando olho em meu redor só consigo ver beleza e genialidade. A natureza, o corpo humano, o tempo, o espaço, a música, a literatura, a mente humana, tudo é de uma enorme beleza. Funciona tudo a um ritmo tão coordenado e tão exato, tudo parece ter um sentido tão bem pensado e construído, que só pode ser um milagre. Olho para a vida desta forma: a vida é um milagre autêntico. A evolução que nos trouxe aos dias de hoje, tudo o que já passou, a quantidade de seres (humanos e não só) que já pisaram este mesmo chão que hoje nós temos a oportunidade de pisar, os planetas, o sol, o universo são a prova de que estarmos aqui hoje é uma dádiva. 

Sabem, quando era pequena, tinha constantemente um pensamento sobre o milagre que era viver. Eu sentia-me imensamente sortuda por ter nascido humana, acreditava que tinha sido o meu grande golpe de sorte. Porque no meu imaginário, eu poderia ter nascido planta, candeeiro, televisão, girafa. Eu achava que me tinha sido atribuído o direito de nascer pessoa, enquanto a outros tinha sido atribuído o formato objeto, a outros o formato animal e etc. Por isso, já nessa altura, a vida me parecia uma autêntica bênção. Eu fazia parte do melhor grupo: era pessoa! Além de que, não só era pessoa, como tinha nascido num país seguro, com condições, e numa família que me amava e fazia tudo para me ver bem. Quantas e quantas vezes não dei comigo a pensar que raio de sorte me tinha atingido para ter nascido no sítio, forma e jeito certo? 

Por isso, sim, eu acredito em milagres. E acredito no maior deles todos: esta vida maravilhosa que nos foi dada a oportunidade de viver. Por pior que seja a fase que estejamos a vivenciar, nunca mas nunca mesmo nos podemos esquecer de que, pelo menos, estamos vivos e que não há nada melhor do que estar vivo. Essa é a maior oportunidade que alguma vez nos poderá ser dada. Há dias cruzei-me com uma frase que, em traços gerais, dizia: há sempre um novo amor, um novo emprego, um novo amigo, só não há uma nova vida. Isto fez fricção dentro de mim por ser incrivelmente verdadeiro. Temos o direito e dever de fazer desta vida uma vida estupenda! 

A beleza da vida é a experiência. Não sejamos ingénuos: há momentos muito duros. Há acontecimentos que nos arrombam e derrubam, como se a vida nos estivesse a assaltar à mão armada e não conseguíssemos fazer mais do que nos rendermos e tentarmos recuperar o fôlego. Da mesma forma que há momentos de uma beleza e magia imensas. Que nos fazem transbordar de alegria, tanto que nos sentimos pequenos para o tamanho que a nossa felicidade ocupa. E, porque não são menos importantes, existem os momentos de serenidade, em que nada de destrutivo ou incrível acontece, mas nos é permitido estar em paz e usufruir dos pequenos milagres diários. É esta mistura ora assustadora, ora mágica, ora pacífica que dá sabor e tempero à vida. Que lhe dá sentido. 

Não sei se o que escrevi fará algum sentido ou se será uma representação aproximada e fiel do que sinto em relação a viver, mas a mensagem é muito simples. Quanto mais penso nisto que é viver, mais agradecida me sinto por cá estar. Gosto verdadeiramente de viver e é por isso que esta é a minha metáfora marcante. A cada dia que acordo, sinto que me foi dado um presente: viver!

19
Nov19

um beijo de amor

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Estava uma noite invernosa, com direito a chuva e temperaturas negativas. Ela vestia várias camadas de roupa, perdendo-se no meio de tanto tecido. Por mais que desejasse estar bonita e atraente (e desejava), sabia que estava muito frio e entre ter frio e brio, ela preferia não ter o primeiro. Iria encontrar-se com ele e com o resto do grupo de amigos, afinal era uma noite de festa. Estava ansiosa, sabia que algo ia acontecer, só não sabia como e quando.
Quando se encontraram, pareciam dois miúdos sem jeito. Pareciam não, na verdade, era mesmo isso que eles eram. Dois adolescentes apaixonados e envergonhados perante um sentimento desconhecido até então. Ele puxou-a para ir consigo, afastando-se do grupo e ela foi, dando-lhe a mão pelo meio da confusão. Não fazia ideia para onde a levava, mas não ficou preocupada. Confiava nele, sentia-se segura e, naquele momento, a excitação do que poderia acontecer era tanta que não dava espaço para nenhum receio ou medo.
Chegaram a um parque e começou a chover. Correram para um escorrega para se abrigarem, aninhando-se um no outro. Aquela proximidade toda fê-la sentir vontade de sair das centenas de camadas de roupa que trazia vestidas, tal era o calor que sentia. Ele parecia-lhe nervoso, o que a deixou tranquila, pois sabia que não era a única que antecipava aquele momento. Tornaram a correr para um local maior e mais abrigado, acabando por ficar frente a frente. Naquele momento, ela soube o que iria acontecer e não conseguiu deixar de esboçar um sorriso.
Ele, que quando está nervoso adota uma expressão ainda mais séria do que o habitual, foi ao encontro dela e encostou-a à parede, envolvendo a nunca dela com as suas mãos. Ela sentiu o calor da respiração dele cada vez mais próximo de si, até que fechou os olhos, pois aquela visão era demais para observar. Ela queria sentir aquele momento em pleno e só o poderia fazer entregando-se completamente e abdicando de qualquer tentativa de controlo.
Ele beijou-a. Apressado, sôfrego, como se estivesse à espera daquele momento há muito tempo. Ela retribuiu, a medo, não por não desejar o mesmo, sabe deus a quantidade de vezes que ela já tinha imaginado naquele momento na sua mente, mas por nunca o ter feito antes. Aquele era o seu primeiro beijo. Guardara-o para alguém especial, lutando contra todos os pensamentos mesquinhos que lhe diziam que ela já o devia ter feito há mais tempo e que iria ficar para trás em comparação com as suas amigas. Soube naquele instante que tomara a decisão certa, a de esperar. Porque aquele beijo certamente não fora perfeito, mas tinha sido com a pessoa perfeita.
Será que foi um beijo de amor? Naquela altura, amor parecia um sentimento muito forte e maduro. Paixão talvez fosse a palavra mais acertada. Ou desejo. Mas a verdade é que aquele foi o primeiro de muitos beijos, beijos estes que se, no início não eram, rapidamente se transformaram em beijos de amor. 

18
Nov19

uma esquina marcante

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Era quarta-feira, sinónimo de tarde livre que, por sua vez, era sinónimo de namorar. Estava um dia chuvoso, mas não queriam ficar na escola, pelo que se lembraram de ir para um antigo centro comercial da cidade, semi abandonado e apenas ocupado por escritórios. Assim, estariam abrigados da chuva e poderiam namorar sem estarem preocupados com os comentários e partidas dos amigos.
O namoro ainda era recente e eles eram apenas dois jovens adolescentes a experimentar aquela corrente de sentimentos pela primeira vez. Sentiam-se atraídos um pelo outro, comportando-se como dois ímanes que rapidamente se juntam e só com muito esforço se afastam. Perdiam-se em beijos, uns lentos, outros apressados, não sendo capazes de resistir um ao outro. Naquela esquina escura e escondida, entregavam-se aos braços um do outro, envolvidos num abraço quente, sólido e íntimo. Eram dois miúdos a conhecer-se, a descobrirem os seus corpos e o desejo que deles emanava. Não havia qualquer promiscuidade nem segundas intenções. Cada toque dava origem a um mundo de sensações que parecia ultrapassar os cinco sentidos. Comunicavam através da linguagem dos seus corpos, num idioma criado por eles e no qual somente eles eram fluentes.
Naquela tarde, quando regressava a casa, ela apanhou uma molha valente. Mas, curiosamente, não sentiu a chuva na pele, não sentiu o frio provocado pelas roupas encharcadas e pelos fios de cabelo mergulhados em água. Sentia-se tão feliz, tão viva e quente. Foi o caminho todo a sorrir, como se o seu sorriso fosse uma estrada de mil quilómetros, onde se perde o início e o fim. Um sorriso tão brilhante que poderia servir de lanterna na mais escura gruta.
Aquela esquina escondida e escura havia de ficar para ser marcada na sua memória, por ter sido uma das primeiras vezes que ela deixara alguém tocar no seu corpo e, mais profundamente, na sua alma.

17
Nov19

um equívoco consertado

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Seria sempre e para sempre uma das melhores memórias deles enquanto família. Quatro almas, há muito tempo atrás, tanto que até parece ter sido numa outra vida, em redor da mesa de jantar, riram-se tanto que, a dado momento, gargalhadas deram origem a lágrimas, que se tornaram novamente em gargalhadas, só que mais fortes e descontroladas. Riram-se tão alto que até temeram que os vizinhos pudessem ouvir e pensar que estávamos todos a endoidecer naquele andar.

Sabem aqueles momentos de riso que nos fazem doer a barriga como se tivéssemos acabado de participar numa prova de abdominais para entrar para o exército? Em que nos sentimos leves como penas quando, finalmente, nos conseguimos restabelecer? Mas sabemos que, se alguém não aguentar e retomar o riso, já lá vamos nós também novamente?

Pronto, esta memória é sobre um desses momentos. Um desses momentos inesquecíveis quando ainda éramos uma família da qual eu me orgulhava. Nessa altura, a única refeição que fazíamos todos juntos era o jantar, devido à correria da vida de cada um. Mas o jantar era muito mais do que nos sentarmos à mesa e comermos. Era um momento de partilha, em que cada um de nós contava as novidades do seu dia e se debatiam os mais diversos assuntos. Por vezes, os nossos jantares prolongavam-se, mas era tão difícil sair da mesa e dar por encerrado aquele momento em que sentimos que pertencíamos uns aos outros e juntos éramos capazes de tudo. 

Num desses longos jantares, a propósito não sei bem de quê, houve uma confusão de palavras. A minha mãe queria dizer uma coisa, mas todos entendemos outra que distorcia por completo o que ela nos tentava dizer e tornava a história hilariante. Nós riamos que nem uns perdidos e ela olhava para nós como se fossemos doidos e ela fosse a única pessoa sã naquela mesa. Quando, entre risos e respirações ofegantes, o meu pai tentou esclarecer o equívoco, a minha mãe juntou-se a nós na risota. Finalmente entendeu o que tínhamos percebido e como isso tornava tudo muito mais engraçado.

Rimo-nos tanto naquela noite e continuamos sempre a rir-nos quando recordávamos esse momento épico. Um acontecimento tão simples, mas que nos deixava sempre de sorriso no rosto. Acho que ainda hoje, apesar de não sermos mais uma família e os nossos jantares serem pautados apenas pela comida e longos silêncios, esta memória é capaz de nos fazer sorrir. Porque esta é a parte boa do passado: não pode ser alterado. E, assim, nunca perderemos esse momento, mesmo depois de termos perdido tudo o resto. 

17
Nov19

obra(s) de arte

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Uma obra de arte. Na sexta-feira, dia em que o desafio pedia que se escrevesse sobre uma obra de arte, fiquei quase uma hora a olhar para uma página em branco, a ver o piscar daquele que penso ser o símbolo do computador quando está à espera que surja alguma palavra (algo semelhante a isto "|") e soube que estava a vivenciar o primeiro bloqueio criativo deste desafio. Sabia que eventualmente iria acontecer, porque são 30 itens aleatórios e diferentes e nem todos os dias nos sentimos inspirados. Curiosamente, tenho escrito sempre sem dificuldade, mesmo quando começo e não faço ideia sobre como vou acabar. A magia acaba sempre por acontecer e, a meio de uma frase, sei exatamente sobre o que quero escrever, mesmo que tenha começado sem norte.

Por algum motivo, está a ser difícil escrever sobre uma obra de arte. Não sei se é por não conseguir focar-me numa ideia específica ou se é por ter dificuldade em compreender o que é, exatamente, uma obra de arte. Para mim, há tanta coisa que cabe nesta gaveta chamada "arte". E, de imediato, as que me ocorrem mais rapidamente são a música e a escrita. 

Hoje terminei a leitura de mais um livro incrível. Ainda estou a pensar no raio da história e sinto que penso nas personagens e no seu desenvolvimento como se estivesse a pensar sobre algo que algum amigo estivesse a vivenciar e partilhasse comigo. Esta é uma sensação que se repete a cada livro bom que leio. Mas há muitas outras igualmente intensas. Questiono se uma obra de arte não será exatamente "isto"? Algo capaz de nos provocar, de nos abalar, seja positiva ou negativamente. Algo que coloca o mundo real em suspenso e nos faz viajar sem ser necessário tirar os pés do chão. Algo que nos transforma, nem que seja uma minúscula partícula do nosso ser.

Sinto dificuldade em falar de uma obra de arte, porque nesta definição cabe um universo. A natureza é uma obra de arte. O amor de uma mãe por um filho é uma obra de arte. Um beijo apaixonado é uma obra de arte. Uma gargalhada sonora e contagiante é uma obra de arte. Um livro, uma música, uma pintura são obras de arte. 

Por isso, não sei o que vos posso dizer acerca de uma obra de arte. Porque eu, feliz ou infelizmente, só sei reconhecer que existem biliões de coisas que considero obras de arte e jamais conseguiria falar-vos de apenas uma. 

14
Nov19

um adormecer tranquilo

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Nenhum lugar no mundo se assemelhava ao conforto e aconchego dos seus braços. Com a cabeça encostada no seu peito, embalada pelo ritmo do seu coração, sincronizavam as suas respirações, inspirando e expirando em uníssono, como se dois corpos se fundissem num só. Ele abraçava-a, cercando-a com os seus braços como se estes criassem uma barreira protetora entre ela e o mundo. Enquanto fosse prisioneira daquela fortaleza, nenhum mal a poderia alcançar, ele não deixaria que tal fosse possível.
Mesmo nas noites difíceis, em que as preocupações invasoras lhe roubavam o sono, só a presença dele, a dormir pacificamente junto de si, deixava-a tranquila. Acabava sempre por adormecer abraçada a ele, como se tentasse assegurar que ele não fugiria nem iria a lado nenhum. Ele era o seu porto seguro e, junto a ele, nenhuma tempestade parecia impossível de ultrapassar.
Foi desde que começaram a dormir juntos que ela descobriu o que era adormecer tranquilamente. Com ele, só existia acalmia, sossego, proteção e conforto. Os beijinhos na testa, o calor dos seus corpos abraçados, os pés entrelaçados (que eram uma verdadeira tormenta para ele, pois os pés dela assemelhavam-se a dois cubos de gelo), um encaixe perfeito das suas posições preferidas para dormir. Com ele, todas as noites eram profundamente deliciosas. Adormecer e acordar a seu lado era experienciar um amor sem limites, que não se esgota, que nunca entra em modo suspensão.

13
Nov19

um caminhada (nada) curiosa

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Era o seu ritual matinal e de fim do dia: caminhar. Morava a uma distância relativamente curta da faculdade, cerca de dois a três quilómetros, pelo que percorria diária e religiosamente aquele percurso a pé. 

De manhã, caminhava para despertar. Ao som da música, outras vezes a falar com a mãe ao telemóvel ou até em silêncio, entregava-se ao caminho e lá ia ela, acordando gradualmente, dispersando o mau humor, a vontade de dormir, as preocupações e toda uma série de mazelas. Quando chegava à faculdade, sentia-se renovada. Podia fazer chuva, frio ou até um calor desértico, mas nada constituía um obstáculo que não pudesse ser ultrapassado. Tornou-se campeã em enfrentar tempestades, tudo graças à vontade de caminhar e evitar transportes públicos. 

Ao fim de um dia de aulas, a caminhada já não era um despertador, mas antes um entorpecedor. Entre a faculdade e a chegada a casa, tinha oportunidade de descomprimir, de refletir acerca do dia, de organizar mentalmente a agenda de tarefas, de respirar ar puro. Quando colocava a chave na porta, sentia-se leve. Por muito cansada que chegasse, sentia-se bem. 

Não era um percurso particularmente bonito, mas fazia parte da sua rotina. Não tinha nada de curioso, ao fim de pouco tempo tornou-se até bastante familiar. Era a oportunidade perfeita para estar consigo mesma antes de se conectar com o mundo e, depois, de se desconectar deste. Uma espécie de interruptor. E era mágico. 

12
Nov19

sorriso

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Nesta vida maravilhosa, há uma série de prazeres, dos mais pequenos aos maiores, que me deleitam. Poderia enumerar tantos, desde a leitura compulsiva de um bom livro, uma boa chávena de chá quente num dia frio, um gesto de amor, viajar, um elogio inesperado. Mas quanto mais refletia naquele que é o meu prazer inenarrável, mais percebia que não podia ser nenhum destes. Um prazer deste calibre deve ser um prazer simples, tão singelo que se torna indescritível o seu impacto e força. Para mim é sorrir. 

Chamem-me pirosa, lírica ou ingénua, mas, para mim, um sorriso simpático pode transformar o dia de alguém. Sou a típica romântica que acredita que um sorriso não custa nada a quem o dá e vale tudo para quem o recebe. E isto não é agora, sou assim desde que sou gente. Sorrir é o meu super poder neste mundo cada vez mais caótico e doido, em que toda a maioria das pessoas se esquece que tem uma arma na face e que podia premir o gatilho sempre que assim o desejasse. Uma arma que dispara uma bala de bondade e afeto, de cuidado, de boa disposição, de compaixão, gritando "estamos todos neste barco chamado vida!". 

O meu maior prazer é este. Simplesmente sorrir. Sorrir a mim, aos outros, ao mundo e à vida. Mesmo que não haja motivo nem explicação. 

11
Nov19

uma discussão parva

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Casa cheia de amigos, jantarada, pessoal com vontade de sair e ela com uma apresentação importante no dia seguinte. A necessitar de todas as horas de sono e de toda a energia disponível para estar no seu melhor. O senão? Ficaria sozinha em casa. Para ele, era um claro dilema: queria ir com os amigos, aproveitar a noite que estava a ser tão divertida, mas a ideia de a deixar sozinha em casa não o agradava. Não que lhe fosse acontecer alguma coisa, mas custava-lhe pensar que ela ficaria sozinha enquanto todo o grupo se iria divertir. Uma parte de si queria ir, outra só queria enroscar-se com ela na cama e aproveitar o silêncio e a solidão da casa.
Ela era das teimosas. E, por muito que lhe custasse admitir, por vezes ainda esperava que os outros agissem como ela agiria. Traduzindo: racionalmente, queria que ele se fosse divertir e sabia que não havia nada nisso que a pudesse deixar chateada; emocionalmente, queria que ele fosse solidário e ficasse consigo em casa. Quando este tipo de dilemas nasce dentro de uma mulher, o resultado raramente é bom, porque a razão e a emoção confundem-se, manipulam-se e, às tantas, a discussão está instalada. Foi o caso deles.
Foi uma discussão do pior estilo que pode haver. Engane-se quem julga que as piores discussões são aquelas que envolvem gritos e portas a bater. Não, as piores são aquelas em que reina a ausência de palavras e se instala um silêncio ensurdecedor, capaz de ferir. A deles era assim: cada um para seu lado, calado, pensando até quando é que seria capaz de aguentar e não ceder. Nestas discussões, os níveis de orgulho disparam e ela sabia que não existia ser humano mais orgulhoso do que ele. A única exceção naquela noite foi que ela superou o seu recorde de orgulho e também não disse uma palavra.
Quando a porta de casa bateu e a algazarra se evaporou, ela entregou-se às lágrimas. Estava sozinha, ele tinha realmente ido. Sentiu-se estupidamente triste. Abandonada. Deitou-se com o coração pequeno, abraçado a si mesmo, revendo na sua mente a cena parva que tinha protagonizado momentos antes. Pensou em todos os lados, perspetivas, ângulos. Típico da sua pessoa, entregou-se à questão que aparecia sempre que discutia com alguém: será que tenho direito de ficar chateada?
A muito custo e depois de muitas lágrimas, adormeceu. Não esperava, contudo, ouvir a porta do seu quarto abrir a meio da noite e despertar com aquele som e toda aquela claridade. Ergueu-se, viu um vulto ao fundo do quarto, junto à porta, e tornou a deitar-se. Ela sabia que era ele. E se não sabia, estava prestes a descobrir, pois ele foi ter junto de si e fez-lhe uma festa pela cabeça, dando-lhe um beijo na testa.

Porque o orgulho já lhe tinha custado a noite, decidiu engoli-lo e puxou-o para si, afastando-se na cama, abrindo-lhe espaço para que se deitasse junto de si. Ele assim o fez, abraçando-a com carinho. Adormeceram nos braços um do outro, local onde pertenciam, onde sempre se encontravam e onde tudo se resolvia. Novamente, sem serem necessárias palavras nem argumentos. Num local onde a razão não é chamada, onde a emoção se inibe e apenas se abre espaço para o que há de mais puro e tonto: amor. 

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