momento(s) de coragem
E ali estava eu, com 30 pessoas especadas a olhar para mim, à espera da minha resposta, e tudo o que eu conseguia fazer era chorar. Chorar e arrepender-me do momento em que decidi que era boa ideia por a mão no ar para responder a uma colega que, angustiada, questionava como é que conseguiria despedir-se da avó, que estava cada vez mais doente. Só mais tarde compreendi como estas questões são muito mais dirigidas a nós mesmos do que aos que nos rodeiam.
"A esta eu sei responder" pensei para mim mesma. Porque sabia. Sabia bem demais, porque essa tinha sido a mesma questão que eu tinha colocado, inúmeras e inúmeras vezes, quando a minha mãe me contou com a minha avó estava doente e em fase terminal. Não havia nada a fazer: o bicho era grande e tinha criado habitação numa série de lotes do corpo da minha, julgávamos nós, saudável avó.
Lembram-se de vos ter dito que em segundos a nossa vida jamais é a mesma? Esse foi um desses momentos. Ela ainda estava connosco e parecia que eu já a sentia afastar-se. Como quando olhamos fixamente uma imagem e, ao fim de algum tempo, a começamos a ver cada vez mais desfocada e sem qualquer detalhe. Só que a minha avó ainda estava ali, viva, consciente, lúcida, a tentar compreender o que raio se passava com o seu corpo.
"Um dia todos vamos morrer" foram as palavras que escolheram para lhe confirmar um diagnóstico nada favorável. Palavras secas, frias, cruas, cruéis, desprovidas de qualquer sensibilidade e cuidado. Foi nesse dia que eu soube que a minha avó também era capaz de sentir medo, porque até então eu achava-a uma super mulher, superior a qualquer coisa. Mas ela não sentiu apenas medo, ela sentiu pânico. Desespero. Como se estivesse encurralada num beco sem saída, com as paredes a estreitar cada vez mais e o ar a tornar-se mais e mais rarefeito, até que se tornou impossível respirar. Coitadinha. Ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos quando penso nela, a receber a sua sentença. Foi mais um daqueles dias em que tive uma crise de alergia a injustiças. Em que mundo justo poderia a minha avó estar sujeita àquele fim? Já me cansei de procurar respostas, conformei-me.
Só que a minha avó era, de facto e como eu suspeitava, uma super mulher e quis provar a sua força até ao último suspiro da sua vida. Encarou a morte de frente. Fechou-se numa sala com ela, olhou-a nos olhos e não deixou que esta fosse capaz de lhe provocar mais uma lágrima. Trabalhou até ao fim, sabe deus em que condições, mas ela precisava disso. Precisava de vida nos seus dias, já que lhe tinha sido confiscado acrescentar dias à vida.
Foi piorando, dia após dia, às vezes hora após hora. Até que no fim, já só restava um grande saco de dores, de fios a entrar e sair por todo o lado, de confusão e desorientação. Ela ainda estava ali, mas já não parecia ser a mesma. Ainda assim, guerreira como era (e teimosa!), insistia em fazer as coisas sozinha, porque nunca quis dar trabalho a ninguém.
Não consigo pensar em momento de coragem maior do que o braço de ferro que vi a minha avó travar com a doença e com a morte anunciada. Porque coragem não é ausência de medo, é ir além do medo, mesmo estando a morrer de medo. É fazer do medo companheiro de viagem, mas ir, nunca parar. Não foi um momento de coragem, foram vários. Desde o choque perante o diagnóstico até ao seu último dia de vida.
Naquele dia em que tentei responder à minha colega, o que pretendia dizer-lhe é que não há forma de nos despedirmos. Mesmo quando sabemos que o teremos de fazer, que o tempo corre em contra corrente e não a nosso favor. Só nos resta aproveitar todos os momentos que a vida nos oferece, sabendo que com a facilidade com que nos dá, também nos tira. E, muito importante, transmitir amor. A minha avó sabia que estava a morrer, mas nunca quis que ela lesse essa triste verdade nos meus olhos. Queria que ela só visse amor, todo o amor que eu sentia por ela. Que ela visse esperança. Que ela se visse a si mesma e compreendesse que jamais morreria: estaria sempre viva em mim. É a única forma de eternidade que nos resta.
A minha avó foi a definição de coragem em toda a sua vida. Naquela sala, com aqueles estranhos a ver-me chorar, também me senti corajosa. Nunca imaginei que seria capaz de ser tão vulnerável. E certamente não poderia saber como esse momento, em que me sentia completamente exposta e nua, foi o catalisador para superar a sua perda. Foi ali, naquele palco improvisado, num momento de total vulnerabilidade, que finalizei o meu luto. E só o poderia ter feito num acto de total coragem, homenageando a melhor mentora que poderia ter tido.