Gostava de te dizer que
Estou zangada contigo, zangada como nunca estive antes, como nunca estive com ninguém. Sinto raiva de ti. Quando me ligas, reviro os olhos e respiro fundo, tentando incutir alguma emoção à minha voz para não sentires o enorme esforço que tenho de fazer para falar contigo. Não me apetece falar contigo. Não me faças perguntas sobre o meu dia, não mostres interesse quando na verdade não o tens. Não forces mais as coisas nem as tornes mais insuportáveis do que elas já são. Vamos ser adultos e deixar-nos destes joguinhos de falsa preocupação.
Quando te ouço entrar em casa, o meu estômago contrai-se. Como se fosses um estranho a invadir a casa que outrora foi nossa, mas que hoje apenas me parece minha. Para ti, diria que é um hotel com pensão incluída. Ouço-te andar pela casa e desligo a luz, tão rápido quanto me é possível, para que não tenhas sequer a ideia de me ir chatear. Sim, chatear. Para ti é conversar, para mim, às onze e meia da noite, é chatear. Se quisesses conversar, chegasses mais cedo.
Quando me ligas a dizer que jantas connosco, apetece-me gritar tão alto até ficar sem voz. Gritar-te que não tens vergonha, gritar-te que não tens direito de comer connosco e que devias escavar um buraco para te esconderes. Em vez disso, digo que sim e desligo. Não tenho energia para gritar, embora não me falte vontade.
Ultimamente mal te vejo e mal dirigimos uma palavra. Sinto-me mal? Não. É assim que são as coisas, estou bem com isso. Cansa-me mais ter de representar um papel e fingir que está tudo bem quando claramente não está e tu és o culpado por isso.
Uma vez disseste-me que tinha de apoiar a mãe, ser amiga dela, aguentar. Apeteceu-me dar-te um murro na cara e mostrar-te o que é o verdadeiro apoio. Apeteceu-me provocar-te dor, mesmo sabendo que por mais que me esforçasse nunca sentirias na pele nem um terço do que ela sente diariamente. Gostas de dizer que, para ti, é uma situação complicada. E eu adoro contrariar-te e dizer-te que tu estás na posição mais fácil. Ficas confuso, a olhar para mim, e eu coloco a minha expressão mais dura e enfrento o teu olhar duvidoso. Queres apoio e validação, mas não é de mim que os terás.
Não te conheço. Não sei quem és e chego a duvidar se sempre foste assim ou se foste alvo de alguma lobotomia, que nos tivesse passado ao lado. Sinto saudades de quem eras, mas já não consigo dissociar essa saudade da dúvida se alguma vez chegaste a existir ou se eras uma mera construção da minha imaginação? Ainda assim, posso assegurar-te que nunca coloquei em causa o excelente pai que foste. Não o poderia fazer, porque gosto de ser justa e a verdade é que foste o melhor pai que eu poderia ter tido. Cheguei a travar batalhas com a mãe por causa desta questão, pois ela sentia que eu te preferia sempre a ti. Não sei se ela não terá razão: houve uma fase na minha vida que eu era incapaz de escolher entre vocês, gostava tanto de um como de outro e sentia que o que faltava num, estava presente no outro, por isso, saía sempre a ganhar.
Foste um pai presente, acompanhaste-me desde sempre e fui sempre uma filha orgulhosa por ter um pai como tu. Até ao dia em que percebi que vivas uma vida dupla e que eras mais mestre da manipulação do que muitos mágicos. Por um lado, penso que te apaixonaste por outra pessoa e que isso deve ser complicado; por outro, penso que nos escondeste durante meses esta realidade e viveste uma vida paralela, tratando-nos muitas vezes de forma incorreta e desleal. Não merecíamos isso, sobretudo quando andavas a aquecer a cama de outra pessoa e a estragar famílias.
Às vezes olho para ti e o meu coração fica do tamanho de uma ervilha, de tão contraído e apertado. Caramba, porque é que foste fazer isto? Será que não existe uma sinapse algures nessa cabeça oca que te faça ter uma iluminação e perceber que destruíste tudo e todos? Que jamais voltaremos a ter o que tínhamos? A ser o que éramos? Porque é que tinhas de estragar tudo?
Olho para ti e tenho pena. Sinto-me desiludida e magoada. Não demonstro mas preocupo-me contigo. Desligo as luzes quando chegas a casa, mas muitas vezes só me sinto totalmente tranquila quando sei que estás em casa. Tal e qual como quando era pequena. Ouvia-te chegar e sabia que podia dormir tranquila. O meu pai estava em casa, eu estava segura. Preocupo-me com a tua saúde, com o teu futuro. Preocupo-me que te sintas sozinho, que sintas que não gosto de ti, que sintas que perdemos o que quer que fosse que tivéssemos. Olho para ti e sinto falta da tua gargalhada, de te ver rir, de te ouvir contar piadas. Caramba pai, sinto que estamos os dois vivos, mas é como se ambos tivéssemos morrido e estivéssemos a viver a perda um do outro. Sinto a tua ausência como se fosse permanente, mesmo contigo ao meu lado. E tenho medo que este emaranhado de emoções mal resolvidas que carrego comigo me impeça de aproveitar todos os momentos felizes que poderíamos viver juntos. Tenho medo que este ressentimento nos afaste tanto, que nos leve para caminhos tão opostos, que um dia, quando efetivamente um de nós partir, não sobre mais nada a não ser arrependimento.
Pai, como é que eu vou fazer para te perdoar? Diz-me como é que eu posso perdoar o que nos fizeste. Sinto que me roubaste o presente e o futuro, deixando-me apenas com um passado de boas memórias. Levaste a minha liberdade, a minha capacidade de sonhar, a minha energia, a minha vitalidade. Deixaste-me, em troca, medo, ansiedade e uma gigante responsabilidade: assegurar que a mãe não fica sozinha. Sabes que jamais a abandonaria, mas como posso avançar com a minha vida, sabendo que isso implicaria mais uma mudança radical na vida dela? Para que tu vivas o teu conto de fadas, eu vivo um pesadelo. Não consigo fazer nenhuma projeção do meu futuro, porque quando penso nisso vejo-a a ela, sozinha, desamparada, e aquela sensação de culpa que surge sempre associada à felicidade esmaga-me. É isso pai, como posso perdoar-te se agora, sempre que me sinto feliz, me sinto imediatamente culpada por estar feliz?
Estou cansada de dar importância a isto, de dar relevância, de sentir que nossas vidas giram sempre em torno disto e nunca saem deste ciclo. Gira o disco, toca o mesmo. Até escrever sobre isto me começa a saturar. Odeio este papel de vítima, de oprimida. Odeio multiplicar o negativismo, a dor, a desesperança. Mas quando tento furar caminho e abrir novos horizontes, a realidade cai-me em cima com força. E dói.
Pai, não sei o que mais te dizer. Acho que já disse tanto, creio que até já terei dito coisas que me arrependerei de ter dito. Porque apesar de tudo serás sempre meu pai, eu serei sempre tua filha e nunca deixarei de gostar de ti. Ou de me preocupar. Ainda que, pela forma como te trato, possas pensar o oposto. Tenta compreender que estou a tentar organizar tudo na minha cabeça e, mais importante, no meu coração. O golpe foi grande, duro e profundo. Dá-me tempo e espaço para cicatrizar esta ferida que ainda está aberta e arde.