Getaway Car
Uma das minhas características, que tantas vezes me irrita e torra a paciência, é que tendo dois caminhos possíveis diante de mim, opto (quase) sempre pelo mais difícil. Não me questionem, há qualquer coisa que me atrai em ir atrás das dificuldades. Ou simplesmente na falta de inteligência! Lembro-me das aulas de matemática, no liceu, em que a minha melhor amiga olhava para mim, com espanto e surpresa (e também, provavelmente, pena pela minha alma complicada), por me ver a calcular, manualmente, a fórmula resolvente, quando tínhamos a mesma instalada na nossa calculadora XPTO e nos permitia obter o resultado em segundos. Pior, mais do que calcular manualmente, eu fazia este cálculo, muitas vezes, depois de já ter o resultado dado pela máquina, apenas para confirmar que estava correto. Quem fala desta situação, fala de muitas outras. Parece que algo me compele a ir sempre atrás do que dá mais trabalho, do que exige mais de mim.
É por isto que, quando decidi optar por um carro de condução automática, me senti em falha comigo mesma. Pela primeira vez na minha vida, encontrei-me a optar pelo caminho mais simples e fácil. Pareceu-me batota, como se estivesse a atalhar por uma rua que me leva exatamente ao mesmo ponto de chegada, enquanto todos os outros estão a percorrer o caminho "oficial".
Conduzir, para mim, sempre foi uma questão. Não por não gostar de o fazer, mas por me sentir a pessoa mais incompetente, mal preparada e incapaz do mundo quando o fazia. Nada na minha vida me fez sentir tão pequenina como a sensação de me sentar em frente ao volante, engatar a primeira e não conseguir arrancar. Convenci-me de que era uma nódoa, uma vergonha, uma impostora, que por mera sorte passou no exame de condução à primeira, enquanto tanta gente mais competente e capaz chumbou. E esta é a parte engraçada do funcionamento das nossas mentes: quando as alimentamos diária e regularmente com proteína negativa, elas tornam-se resistentes a outro tipo de nutrição.
Sentia-me cansada de estar dependente de outros, de me sentir um peso e uma inútil sempre que as minhas ansiedades e cismas levavam a melhor de mim e me obrigavam a pedir a alguém que me desse boleia, que me fosse buscar, etc. Não vivo numa cidade especialmente grande nem com uma vasta oferta de transportes públicos, pelo que, as únicas opções possíveis eram a) andar a pé ou b) andar à boleia. O grande problema é que a primeira opção nunca foi viável para me deslocar para o trabalho.
Assim, durante muito tempo, esta condicionante fez-me sentir mal comigo mesma. Ponderei regressar à escola de condução para ter algumas aulas, mas os meus pais sempre me disseram que o meu problema não estava na minha competência a conduzir, mas sim na minha confiança acerca da minha competência. Eles diziam que precisava de praticar, de arriscar, de me expor à vulnerabilidade de ser uma amadora e permitir que a experiência fizesse o seu papel e me fizesse adquirir gradualmente confiança em mim mesma. Perdi a conta ao nº de vezes que determinei, ano após ano, que me dedicaria à condução. "Este ano vai ser o ano em que vou conduzir!" dizia a mim mesma, todas as passagens de ano, à meia noite. Escusado será dizer que à primeira falha, adversidade ou contratempo, regressava ao meu estado de incapacidade.
Até que me surgiu a ideia de conduzir um carro automático. A minha maior dificuldade foi sempre lidar com a ansiedade que advém quando o carro vai abaixo na entrada de uma rotunda, após o semáforo passar de vermelho a verde e, especialmente, nas subidas. Mais do que fazer o ponto de embraiagem, preocupava-me não ser capaz de tornar a conseguir conduzir se o carro fosse abaixo. Mas este medo e fonte de ansiedade poderiam facilmente dissipar-se se conduzisse um carro automático, que não exige muito mais do que travar e acelerar. Pareceu-me uma solução boa, boa demais, que pairou na minha mente durante alguns meses, até que decidi avançar com a compra.
Sentia-me uma batoteira, mas pior do que me sentir uma desistente, era a sensação de me sentir uma dependente e um fardo para os outros. Por isso, quando comprei o meu carro, o meu primeiro carro de sempre, fi-lo para adquirir a minha liberdade, a minha independência, mas sentindo-me, simultaneamente, a optar pelo caminho mais fácil e simples, algo que nunca fiz.
Admito, passado quase um ano, que foi a melhor decisão que poderia ter tomado. Os ganhos, as vantagens que me trouxeram a condução automática ultrapassam, largamente, a minha necessidade de complicar e insistir no difícil. Perdi a vergonha de admitir que conduzir era um problema dantesco para mim, que estava cravado no meu sentido de identidade, fazendo-me sentir um fracasso. Conduzir, hoje, é prazeroso. Ainda me surpreendo, de quando a quando, com a capacidade que adquiri de ir sozinha onde me apetece, onde preciso de ir. Uma parte de mim estava profundamente convicta que nunca seria capaz de o fazer. É incrível fazê-lo e compreender que o caminho mais fácil revelou-se o melhor para mim. Não me coloca em cheque, não me minimiza. Como diz uma grande amiga minha: automático ou manual, não deixa de ser conduzir e tu estás a fazê-lo!