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the old soul girl

the old soul girl

26
Fev20

Querida amiga,

girl

Antes de te dizer o que pretendo realmente dizer, sinto-me na obrigação de esclarecer algumas questões iniciais. A primeira é de que te estou a dizer isto por escrito e não numa conversa, olhos nos olhos, porque ainda não consegui reunir forças e competências para o fazer. As palavras escritas, como sabes, sempre me permitiram expressar melhor o que vá dentro de mim e temo que se as dissesse em voz alta, não conseguiria sequer chegar a meio do que te pretendo dizer, porque a emoção falaria mais alto que a minha voz. E eu quero mesmo que saibas de tudo, com todos os detalhes, até os mais sórdidos, sádicos e tristes. Ao mesmo tempo, não o consigo dizer-te oralmente, numa conversa real, porque me sinto, de algum modo, envergonhada com esta situação. Num plano lógico e racional, sei que não fui eu a autora desta confusão, que não tenho a culpa do que se passou, mas sinto uma vergonha enorme de tudo o que se passou e, por vezes, também me sinto culpada. Não pelo que se passou, mas pela forma como lidei e lido com isso. Vergonha e culpa são emoções que, desde há dois anos, convivo de perto e sei como nos conseguem debilitar e paralizar. A segunda questão, que para ti será a primeira que vai surgir na mente, é o porquê de não o ter dito mais cedo. E a esta questão acho que te posso dar várias respostas, mas a que congrega todos os motivos, de forma mais simples e clara, é esta: porque ao não o dizer, não tenho de lidar com isto. Ou melhor, ter de lidar com isto, tenho de lidar todos os dias da minha vida, mas não tenho de lidar com as preocupações e questões de outros. Porque já é tão difícil lidar com as questões dos envolvidos, que não sei se aguentaria ter de lidar também com mensagens e dúvidas constantes sobre isto vindo de outros, de fora. Ainda que fossem de preocupação, de cuidado, de amizade, não me senti (e acho que ainda não me sinto) preparada para ver a minha vida exposta desta forma. Logo eu que, como sabes, sofro de exposiofobia. Gosto tanto do meu cantinho às escuras. Portanto, não interpretes esta atitude como um sinal de falta de confiança em ti, porque se for falta de confiança não será em ti, certamente, mas em mim e na minha capacidade de ser vulnerável.
Acho que depois de leres o que tenho para te dizer, todas as peças do puzzle se irão encaixar e tudo te fará muito mais sentido. A minha distância, a minha ausência, o meu silêncio. Os nossos amigos até brincam se eu estou viva ou já estou enterrada, tal é o meu desaparecimento. Acho que conseguirás compreender a minha fuga de qualquer contacto social e o meu isolamento, porque me conheces. E sabes que eu curo as feridas sozinha, no meu espaço, ao meu tempo. Mas a questão é que se passaram dois anos desde que tudo isto aconteceu e as minhas feridas continuam abertas e, se possível, talvez mais ardentes e profundas do que inicialmente estavam. O meu processo de cura não tem sido linear e por cada passo dado em frente, sinto que recuo outros tantos. Acho que faz tudo parte, mas, por vezes, sinto-me perdida e confusa. E nunca deixo de me sentir quebrada. Irremediavelmente quebrada. Se tivesse de escolher uma palavra para me descrever neste momento, essa seria a ideal: quebrada. Estou a fazer tantos lutos em simultâneo: luto da minha família, luto da ideia que tinha dos meus pais, luto de mim mesma, da minha vida antes de tudo isto. Porque em muitos momentos é isso que sinto: que morri. Deixei de ser a pessoa que era. Roubaram-me a leveza, a simplicidade, a tontice. Tornei-me numa pessoa séria e tão zangada. Às vezes a minha raiva faz o meu coração acelerar como se passasse da primeira à quinta mudança em segundos. Não sabia que uma pessoa de 1,65 cm conseguia conter tanta raiva dentro de si, mas ficarias surpreendida com as toneladas que consigo armazenar neste corpo de fada. Também me tornei numa daquelas pessoas que tem um sorriso triste, sabes? Nunca perdi o meu sorriso, mas para os mais atentos, é detetável a diferença de intensidade com que sorrio. Hoje o meu sorriso é um sorriso de nostalgia, de perda. O meu olhar confirma o mesmo. Estou triste, estou imensamente cansada, aliás, estou exausta e estou muito zangada. E tu nunca desconfiaste de nada, não só porque eu tenho fugido de todos os convívios como, quando estou presente, uso a minha melhor máscara. Todos esses momentos sociais são carnaval para mim. Coloco a minha melhor máscara e lá vou eu. Ao mesmo tempo, tenho de te confessar: nunca sabemos como vamos reagir às coisas até estas nos acontecerem. E também só conhecemos a nossa força e resiliência quando as coisas más nos batem à porta. Ainda hoje não te sei explicar como é que, naquela segunda-feira, consegui vir trabalhar e me apresentar ao mundo, quando só me apetecia ter ficado enfiada debaixo dos cobertores, de olhos fechados, a fingir que nada disto era real. Somos mais fortes do que julgamos e isso é uma descoberta positiva no meio de tanta coisa negativa. Mas também sei que esta força tem um custo, um preço.
No meu caso, foi a minha felicidade e, sem dúvida alguma, a minha liberdade. Cortaram-me as asas ao mesmo tempo que me tiraram o chão dos pés. Sei que hoje sou uma pessoa muito mais reativa a qualquer estímulo, salta-me logo tudo. Ando sempre com o coração nas mãos. Sabes, algumas das piores notícias da minha vida foram-me transmitidas via telefone, por isso, criei uma fobia a telefonemas inesperados. Se a minha mãe me liga ou manda mensagem a meio do dia, sem razão aparente, transformo-me numa pilha de nervos em segundos. Até gozam comigo por isso, mas não consigo evitar. Estou sempre em modo alerta e em modo de perigo. Como se me quisesse preparar para o mal que aí vem, porque espero sempre isso: mal. Viver neste constante estado de sobressalto é nocivo e sabes que ninguém melhor do que eu para o saber.
Já te disse tanto e ainda não te disse o mais importante, que foi o que provocou tudo isto. Mas agora que reflito, talvez a causa não seja o mais importante, talvez tudo o que disse até agora seja o mais urgente e pungente.
Amiga, uma lição que aprendi foi que nunca sabemos as lutas que cada pessoa que passa por nós trava no seu interior. Eu tornei-me numa dessas pessoas, que por fora parece intacta e intocável, mas por dentro está estilhaçada em fragmentos de todos os tamanhos e formas. Andamos todos tão cegos, focados em nós mesmos, que nunca esquecemos de olhar para fora de nós e ver o mundo que nos rodeia. Eu sou uma dessas pessoas, vivo aprisionada nos meus dramas e problemas. Com isto, quero dizer-te que tenho falhado como amiga. Não tenho manifestado qualquer interesse na tua vida, se estás bem, se estás a gostar do novo trabalho, se está tudo bem em casa. Não tenho feito nenhum esforço nem investimento em manter a nossa amizade. Mas também tenho de te dizer que esta falta de esforço não provém apenas da minha parca energia e disponibilidade emocional, mas também vem da certeza que a nossa amizade é daquelas de aço, que a água e fogo não conseguem quebrar nem corroer. Que o tempo de ausência se esfuma em segundos de contacto. Sei que estás sempre à distância de um click, a poucos metros de mim, caso seja necessário. Só não consegui ainda quebrar o vidro do alarme para acionar em caso de emergência. Não sei do que estou à espera, mas sei que se o fizer, tu não me faltarás e serás a chefe da fila do meu socorro. Tal e qual como eras sempre a chefe de fila nos simulacros da escola. Uns diriam que era por seres a mais alta da turma, eu acho que sempre foste tu por conseguires reunir a calma e tranquilidade necessárias quando todos os outros se entregavam ao stress e ao pânico.
Talvez eu consiga fazê-lo, talvez nunca o faça. Só espero é que, tanto num caso como noutro, não me falhes nunca.

19
Fev20

All your perfects

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Este blog começa mesmo a transformar-se, aos poucos, num clube de adoração a Colleen Hoover. Mas não consigo evitar tornar a falar de um livro dela, porque foi o último que li (terminei ontem) e foi, talvez, dos mais intensos que já li, se não me atraiçoa a memória. É imperativo escrever sobre este livro, porque, como já disse e torno a repetir, há livros que nos abalam, que nos viram do avesso e que nos transformam. Há livros que são arte, são magia e quando abertos, nos levam não só para outros mundos, mas também para mundos dentro de nós mesmos nunca antes conhecidos e explorados. All your perfects é um exemplo exímio desse tipo de livros. 

A primeira vez que ouvi falar deste livro foi no blog da Mariana Alvim, que faz parte da equipa das manhãs da RFM. A Mariana é uma leitora compulsiva e adora romances, já me "aconselhou" indiretamente a ler muitos livros devido às reviews que faz dos mesmos. E também é fã assumida da Colleen Hoover, pelo que, quando li a sua opinião sobre All your perfects fiquei imediatamente curiosa e com vontade de o ler. Sabia que o leria em inglês, porque ainda não está traduzido, mas sem qualquer problema porque cada vez aprecio mais ler em inglês e tem sido uma excelente forma de poupar uns euros, tendo em conta que os livros são bastante mais acessíveis.

Quando chegou a casa, coloquei-o na mesinha de cabeceira e posso afirmar, com segurança, que permaneceu na fila de espera uns bons meses. Sempre que acabava de ler um livro, olhava para ele e sentia que ainda não era o momento. Não sei se mais alguém partilha este traço estranho comigo, mas eu tenho uma espécie de feeling em relação aos livros. Preciso de sentir que estou na fase certa e plena para ler aquele livro em específico, da mesma forma que sei quando preciso de um time-out de determinado género e preciso de ir alegrar os olhinhos com outras leituras. Andei neste jogo durante algum tempo, porque sentia que este livro ia ser intenso, ia absorver toda a minha capacidade emocional, ia esvaziar-me e preencher-me em simultâneo. Atenção, não sabia muito da história, mas do pouco que sabia, sentia que seria um livro profundo e nada light. Aliás, nada do que a Colleen escreve é leve ou simples.

”If you only shine light on your flaws, all your perfects will dim.”

Posso confirmar que a minha intuição estava certa, porque este livro é tudo menos leve. Sinto-me drenada e arrebatada por ele. E não vou entrar em detalhe nenhum da história, porque ao fazê-lo iria estar a estragar qualquer coisa, ainda que mínima, e este livro não merece isso. Merece que quem o lê, vá completamente ao desconhecido, que se deixe levar, que se entregue e, meus amigos, que sofra. Porque vão sofrer, preparem-se para isso. Isto não significa que o final da história será uma tragédia, apenas significa que é um livro intenso, é forte, é emocional da primeira à última página. Mas também posso assegurar-vos que há um pouco de cada emoção, nem tudo é tristeza. Aliás, há momentos incrivelmente felizes e apaixonantes e é também por esses que sentimos tão intensamente esta história e sofremos tanto com as personagens. Posso dizer que sofri ao ler este livro, chegando ao ponto de me sentir inquieta e desassossegada em alguns capítulos, noutros senti que o meu coração e o meu peito iam arrebentar de tanto ar que sustive. Chorei muito, chorei tanto que o meu namorado olhou para mim, perdido de riso, e me veio acalmar, frisando que era apenas um livro.

Mas a questão é mesmo esta: sendo apenas um livro, não é apenas um livro. Tocou tantos aspetos e tantas dinâmicas com as quais me confronto diariamente. Fez-me questionar muitas coisas da minha própria vida e levou-me a posições e perspetivas novas, que eu nunca tinha experimentado antes, sobre os assuntos de sempre. Foi doloroso ler este livro, porque a história e as personagens misturaram-se com tantos episódios da minha realidade, despertaram-me para pensamentos e atitudes que não quero ter e que, ultimamente, têm sido frequentes. Mas foi igualmente transformador e libertador aceder a alguns lugares estranhos e perdidos dentro de mim e das minhas relações.

Há duas passagens em especial que me tocaram e quero partilhar. Uma está perdida algures neste emaranhado de palavras, outra é com a qual pretendo terminar este texto, que está completamente desformatado em termos de sentido e lógica, mas que se assemelha muitíssimo ao meu interior depois de ler um livro que me destabiliza, como foi o caso deste. Aconselho vivamente e asseguro-vos, por tudo que é mais sagrado, que a Collen não me paga nenhuma comissão por toda a publicidade que lhe faço. Apenas desejo que nunca deixe de escrever, porque nos iria privar de muita riqueza.

“What's the secret to a perfect marriage?'
'Our marriage hasn't been perfect. No marriage is perfect. There were times when she gave up on us. There were even more times when I gave up on us. The secret to our longevity is that we never gave up at the same time.”

30
Jan20

declaro-me culpada

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Ando há alguns dias a pensar na forma como me inibo de falar de conquistas, projetos, ideias, sonhos!, com a minha família. Não foi algo de que me dei conta de repente, porque como já escrevi muitas vezes, a minha felicidade anda sempre de mãos dadas com a sensação de culpa e de inadequação, como se me sentir feliz fosse um ultraje e um ato pecaminoso. Às vezes esta sensação é criada por mim, outras vezes pela reação que os outros têm quando partilho algumas coisas boas da minha vida. É difícil falarmos de uma viagem que queremos muito fazer ou de um sonho profissional que queremos tornar realidade e recebermos como resposta uma expressão de desânimo, de semi entusiasmo misturada com o comentário "quem me dera" ou "oh, mas e eu?". Adensa-se a sensação de culpa e de condenação, como se a nossa felicidade fosse a evidência de tristeza e desilusão com a vida para outra pessoa.
Falar sobre este nó que carrego no peito é muito difícil. Primeiro, porque por mais que me esforce, nunca consigo encontrar as palavras certas e diretas que representam aquilo que penso e sinto em relação a isto. Porque, se por um lado, considero injusto e castrador não poder viver a minha vida em pleno sem causar desgosto aos que me são próximos, por outro, considero-me egoísta por traçar planos e dar aso a desejos quando esses, os mesmos que me são próximos, não estão bem. É a velha história da difusão de limites: onde começo eu e acaba o outro? Porque é que me sinto tão culpada e proibida de viver a vida que quero pelo facto das pessoas que amo ainda não estarem capazes de fazer o mesmo?
O segundo motivo que torna este assunto asfixiante é este conflito de sentimentos que não há forma de descrever. É sentir vontade de partilhar, mas engolir em seco essa vontade porque vai causar no outro uma sensação de estagnação, um sentimento de ver a vida passar e não a estar a aproveitar, uma confirmação de que a vida a uns pode dar tudo e a outros rigorosamente nada. Se estes "outros" fossem pessoas aleatórias, indiferentes, este era um não-assunto, não tinha existência. Mas estes outros são os meus outros, são a minha família.
Acabei de escrever isto e torno ao ponto inicial em que comecei: não consigo expressar-me em relação a este assunto. Não consigo arranjar uma forma de dizer que gostava que a minha família ficasse apenas feliz por mim e não me olhasse com uma expressão triste, miserável, de lamento. Gostava que, por uma vez, as minhas pequenas conquistas fossem apenas isso: conquistas. E que fossem minhas. Porque sempre que esta sensação se apodera de mim, sinto que as coisas boas deixam de me pertencer e transformam-se. Subitamente, já não são coisas boas que me acontecem, passam a ser evidência da inexistência de coisas boas na vida dos outros. É complicado falar, por exemplo, de uma viagem a dois, com a qual se anseia, se trabalha tanto diariamente para alcançar, e a resposta ser "não posso ir também?". Parte-me o coração e, ao mesmo tempo, tira-me o ar. Mergulho em compaixão e em desespero, num só segundo. E sei que, por mais que me tente explicar, nunca conseguirei fazer-me entender.
Por vezes, regresso ao dia em que a minha avó chorou nos meus braços, dizendo-me que apenas queria ficar connosco. E lembro-me de o partilhar com a minha mãe: vi nela o que vejo hoje em mim. O dilema, o conflito entre a necessidade de espaço e a necessidade de cuidado, a escolha difícil e até impossível entre fazermos o que nos faz bem e fazermos o que fará o outro sentir-se bem. Quase sempre optamos pela segunda hipótese, porque, embora difícil, ainda nos permite sentir o gosto da felicidade, por vermos bem aqueles que amamos. Fazemos esta escolha continuamente, priorizando os nossos, mas nunca deixando de sentir que uma parte de nós fica para trás, pendente, adiada. E, com isso, sentindo que nos vamos perdendo de quem somos e do que queremos, esquecendo-nos de viver a nossa vida.
Este texto não faz sentido nenhum. Mas eu estava a precisar tanto de tirar isto de dentro de mim. E, culpada por natureza como sou, ainda me consigo sentir (mais) culpada por sentir tudo isto. Andava com isto há dias na minha cabeça e escreve-lo não significa que deixe de sentir o que sinto, mas de alguma forma tudo se torna mais claro.

15
Jan20

hora do banho

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Acredito que não sou apenas eu que tenho introspeções profundas e ideias geniais enquanto estou a tomar banho. Aqueles minutos lavam-me, muitas vezes, mais a mente do que o corpo. Não sei se é a água quente que, ao relaxar o corpo, deixa também a mente mais aberta e leve, mas quando tomo banho sinto-me sempre mais tranquila. Já para não falar que tenho incríveis debates comigo mesma e é, inúmeras vezes, o espaço onde tomo decisões, sobretudo as mais difíceis.
Ontem, enquanto tomava duche após o treino, dei comigo a sentir uma vontade muito forte de viajar. Para muitas pessoas, isto pode parecer banal e até algo ridículo de tão óbvio que é, porque a maioria das pessoas gosta de viajar e não é, de certeza, por falta de vontade que não o faz mais vezes. Mas, para mim, sentir esta vontade de ir, de me aventurar e, acima de tudo, de me afastar de casa é significativa. O ano que passou, quando chegou o momento de ir de férias, parecia que me estavam a empurrar para a forca. Uma parte de mim, bem escondida, estava entusiasmada, mas o bolo maior estava apavorado com a ideia de ir e deixar a minha família (ok, a minha mãe) sozinha. A ideia de estar longe, dela precisar de mim e, o pior de tudo, o sentimento de culpa por me estar a divertir e ela estar em casa, cercada pelos problemas.
Acho que sempre tive esta sensação de culpa presente na minha vida. A sensação de que não é justo me divertir, aproveitar a vida, enquanto os meus não o fazem. Sei que nada disto tem sentido lógico, mas tentem lá dizer ao meu lado emocional (que, já agora, é dominante) e vejam o que acontece. E o pior é que esta sensação de culpa, uma vez instalada, fustiga qualquer semente de entusiasmo e diversão. É como uma praga que se infiltra num terreno fértil, pronto a desabrochar.
Quando tento analisar-me e perceber o que está na origem deste sentimento, chego a duas hipóteses, que não são exclusivas, mas antes complementares. A primeira tem muito a ver comigo e com esta síndrome de impostor da qual padeço que, por sua vez, tem base numa autoestima débil. Desde que me lembro que penso sempre em mim a alcançar coisas, conquistas e, de seguida, vem um pensamento bomba que diz "impossível, tu jamais!". A sério, juro que é verdade. É como quando pensamos nas coisas boas e, imediatamente, ouvimos uma vozinha que nos diz "nunca vai acontecer". Eu sempre senti isto, esta sensação de que há coisas, sobretudo as boas, que não estão ao meu alcance e dificilmente me irão acontecer a mim. Porque, porquê a mim? Da mesma forma, quando as coisas boas acontecem ou quando faço algo bem, penso "será que isto está mesmo bem?", "será que isto está certo?". Ao não acreditar que mereço coisas boas, é inevitável não me sentir culpada quando essas me acontecem e não acontecem aos outros. É como se, lá está, fosse uma imposturice, como se não tivesse verdadeiro direito a isso.

Pausemos aqui para uma breve explicação: tudo isto é apenas sentido, é emocional. Racionalmente, sei que nada disto faz sentido, por isso, recorro muitas vezes à lógica, ao pensamento para analisar as minhas emoções e as minhas crenças irracionais. O problema é que usar apenas a razão é insuficiente. Quando se trata de algo tão profundo, a razão e a emoção têm de andar de mãos dadas. Isto significa que não basta pensar que mereço que as coisas boas me aconteçam, eu preciso, essencialmente, de sentir que as mereço. Entendem? É como num luto de alguém que amamos: não basta racionalmente sabermos que aquela pessoa morreu e não voltaremos a vê-la, temos de o aceitar também a nível emocional. Tem de existir um click, uma compreensão nos dois planos.
Posto isto, avanço para a minha segunda hipótese: a minha família. E não vos falo da amostra de família que tenho nos dias de hoje, mas sim da família que fomos e éramos até à pouco tempo. Nós éramos, aquilo que gostamos de chamar, uma família unida. Uma família em que cada um está disponível e presente para os outros, em que o problema de um é problema de todos. E eu sempre pensei que isto era ótimo, porque sempre me senti protegida e acreditei que, independentemente dos desafios que a vida nos apresentasse, seríamos capazes de os enfrentar e ultrapassar, juntos. Só que, com o divórcio dos meus pais e o desmoronamento da família, comecei a ganhar consciência de que talvez a nossa família não fosse unida, mas antes emaranhada. Estas são as famílias em que os limites não estão definidos e, como tal, os papéis que cada um ocupa também não são claros. Era frequente situações de casal serem resolvidas como se fossem situações familiares, que nos envolvessem a todos. Os aniversários de casamento não eram celebrados a dois, mas a quatro. Este emaranhamento (nem sei se esta palavra existe) fez com que os problemas de um fossem sentidos como responsabilidade de todos e isso é bom, mas só em determinada dose. Quando começamos a responsabilizar-nos pelos problemas que não são nossos e que, como tal, não temos forma de os resolver, as coisas complicam-se. O meu sentimento de culpa deriva também disto: de sentir que não tenho direito de aproveitar a MINHA vida porque a vida DA MINHA MÃE está em ruínas. Não me entendam mal, eu não consigo ser feliz em pleno se a minha mãe não estiver bem, não é isso que está em causa. O que está em causa é eu sentir a responsabilidade de resolver os problemas que são dela e não meus. Porque, quer queira quer não queira, há um caminho e todo um processo que lhe cabe a ela percorrer. De igual forma, eu, que também sou parte envolvida, tenho de percorrer o meu. Mas este sentimento de culpa nasce sempre que sinto que estou a avançar no meu percurso e olho para o lado e vejo que ela está estagnada no dela. Inevitavelmente, interrompo a minha jornada e vou para junto dela.
Por isso, quando dou por mim a sentir entusiasmo por viajar, aquela velha sensação de excitação e contentamento por ir numa aventura, não consigo evitar que estou a regressar ao meu caminho. Estou a voltar à pessoa que era, a voltar a sentir vontade de desfrutar da vida e não me focar só nos problemas. Não consigo evitar sentir uma enorme liberdade interior, ao mesmo tempo começo a sentir o sentimento de culpa a emergir. Quero avançar, mas não a quero deixar para trás. Isto faz algum sentido?
Quando comecei a escrever este texto, o meu objetivo era apenas falar de quão maravilhosos e inspiradores conseguem ser os banhos. Agora olho para tudo o que escrevi entretanto e não sei de onde é que isto veio, mas se veio, é porque era necessário. Ultimamente tenho escrito ainda mais para mim do que para qualquer tipo de público (se é que existe), o que pode tornar algum conteúdo chato e repetitivo, mas este blog funciona como o meu diário. Ou melhor, como a minha sessão de terapia. Tenho feito um trabalho intensivo a cada texto que escrevo, porque estas palavras são apenas a representação de milhares de pensamentos, de emoções turbulentas, de memórias, ora boas, ora aterrorizadoras. Por isso, a quem me lê e acompanha, peço desculpa se vos massacro com mais do mesmo a cada texto que publico. No entanto, não posso deixar de o fazer, até porque se apenas pensar nisto enquanto tomo banho, fico sem pele e zeros na conta bancária para pagar a despesa de água e luz!

10
Jan20

5

girl

Avó,

Já foram inúmeras as vezes que olhei para a data de hoje no calendário e pensei em ti. Pensei que foi neste dia, há precisamente 5 anos, que nos disseste adeus (ou até já) num sábado frio e solarengo. Lembro-me como se fosse hoje daquela sensação estranha e premonitória que percorreu o meu corpo segundos antes de entrar em casa e me cair o mundo em cima. De algum modo, que desconheço por completo, era como se eu já soubesse que já não estavas connosco. E não estavas, pelo menos na forma, no corpo, na matéria como te conhecíamos. 

Torno a dizer-te que esbarrei tantas vezes na data de hoje e pensei em ti, avó. Mas tenho de te confessar que em nenhum momento me dediquei a pensar em ti só e exclusivamente, como tu mereces. Tenho dito e repetido a mim mesma, ao longo do dia, que esta data merece ser sentida e refletida como deve ser: com calma, tempo e amor. Quero dedicar-me a pensar em ti, em nós, na vida que partilhamos com toda a atenção do mundo, focando-me muito mais no que vivemos do que naquilo que deixamos por viver após a tua partida. 

Sabes, avó, quando tento encontrar recordações de momentos vividos contigo em que não fui feliz, falho sempre redondamente. E acho que deve ser a ocasião em que mais adoro ser uma falhada!  Talvez a única, para ser sincera. Porque não há uma única memória, nem sequer uma exceção que confirme a regra, em que eu não tenha sido feliz ao teu lado. Quer dizer, avó, haver, claro que há, mas são as memórias de quando estavas doente e essas não contam, porque não foste a culpada da minha infelicidade, tu estavas tão mais triste do que eu, tão mais desesperada. Essas memórias foram-nos impostas, não fomos nós que as criamos, por isso continuo a sentir que não houve um momento em que não me tenhas feito feliz. 

E tu sabias tão bem como me fazer feliz. Era uma fórmula simples e que resultava sempre. Com as coisas pequenas, como a minha comida preferida, a cama sempre quentinha, os longos e aventureiros banhos de espuma, os desenhos animados nas manhãs de domingo, as torradas e o leite com chocolate, as palmadinhas de orgulho à medida que o meu corpo ia crescendo e me transformava numa menina-mulher, as idas ao sótão da tua casa que hoje vejo como era pequeno, mas naquela altura parecia-me gigantesco. Porque em cada uma destas pequenas coisas imprimias sempre tanto amor, tanto carinho e doçura. Num só abraço seguravas o mundo e fazias sentir-me intocável e protegida por uma força oculta e invisível. 

E depois há outra coisa, avó. É que tu eras um terramoto, uma força incontrolável da natureza. Eu nunca conheci ninguém como tu, tão destemida, tão guerreira, tão senhora segura de si mesma. O orgulho que eu tenho em ti desde sempre. Se tu soubesses como eu falava de ti aos meus amigos, ficarias enternecida e perceberias que para mim sempre foste a super-mulher. 

Hoje recordo-te por todas as coisas boas que nasceram da sorte de sermos neta e avó uma da outra. Estou em paz com a tua ausência, porque compreendi, não só com a cabeça, mas também (e sobretudo) com o coração, que vives em mim. Nunca estarás ausente enquanto continuares tão viva dentro de mim. Quando te vi naquele caixão, não derramei uma lágrima, porque aquele corpo já não eras tu, era apenas isso, um corpo. O que tu eras já não estava ali e, por isso mesmo, não eras, continuas a ser. Para mim continuas a ser, sempre serás. Claro que nunca deixarei de sentir que te perdi cedo demais, mas não seria sempre cedo demais? Não me farias sempre uma imensa falta e deixarias sempre uma excruciante saudade? 

Avó, 5 anos longe de ti. Sabes do que sinto mais saudades? Dos teus abraços. Ainda não voltei a encontrar noutros braços o conforto e a inocência que encontrava sempre que me aprisionavas nos teus. Sinto que aquela menina pequena ficou para sempre amarrada num abraço teu. Um abraço casa, que em meros segundos transformava todo o restante dia. 

Avó, gosto tanto de ti. E todos os dias luto contra a minha racionalidade para me convencer que um dia voltarei a encontrar esse abraço apertado e me sentirei novamente em casa, contigo. Era tudo o que mais queria. 

06
Jan20

insights

girl

Vamos no 6º dia de 2020 e sinto que este novo ano já deixou de ser novo, porque o peso dos problemas de sempre não deixa que nenhuma novidade se mantenha por muito tempo. O ano arrancou em força logo no seu segundo dia, com uma bombástica novidade familiar que, novamente, vem por tudo em alvoroço e desafiar todas as certezas construídas até à data. Tudo isto faz retornar medos e angústias, que não estando ainda sarados, regressam com ainda mais força. Mas a vida é mesmo assim, não é verdade? Sempre a abanar as nossas convicções mais certas e a provar-nos que viver um dia de cada vez é mesmo o segredo para um coração tranquilo. 

Sei, de antemão, que 2020 vai ser um ano desafiante. Vai ser o ano das grandes resoluções, sejam aquelas que dependem de mim, sejam aquelas que me são impostas pelos outros. Ainda agora começou e já tive uma quantidade generosa de insights, de súbitas compreensões acerca de questões que me têm andado a moer o juízo. 

Por exemplo, compreendi que, embora goste do trabalho que desempenho, não adoro o que faço. Como já partilhei, a minha profissão insere-se na minha área de formação, mas localiza-se mesmo na fronteira, quase a saltar para outro ramo. Na altura, como precisava mesmo de trabalhar, não pensei duas vezes em mergulhar nesta área, pela riqueza das oportunidades de trabalho, que em tanto contrasta com a pobreza das oportunidades na minha área de formação principal e, essa sim, dona do meu coração. Esta compreensão parece óbvia, mas a novidade, para mim, não foi perceber que não adoro o que faço, foi antes entender que, um dia que abandonar este trabalho, não pretendo seguir esta profissão. No dia em que me libertar, será para me dedicar exclusivamente ao que sempre gostei de fazer e para o qual efetivamente estudei. Esta compreensão fez-me sentir bem comigo mesma, mais leve de certo modo, por me fazer focar, estreitar a minha visão para o futuro. Com a necessidade de começar a trabalhar o quanto antes e, depois, de manter a independência financeira, acabei por negligenciar o quanto gosto da minha verdadeira profissão, como se guardasse este sentimento no meu sótão emocional, numa tentativa de não sofrer por aquilo que não tenho e saber valorizar o que tenho. Faz algum sentido?

Compreendi também, não pela primeira vez, mas da forma mais forte e radical, o quanto preciso de curar as feridas emocionais abertas. 2019 foi um ano de sobrevivência, em que o meu foco foi limpar, da melhor forma que consegui, os estragos criados por outros. Foi um ano de engolir sentimentos, uns atrás dos outros, de viver adormecida, o que me fez tantas vezes questionar se estaria realmente a viver ou simplesmente a existir. Foi o ano das grandes questões existenciais, do tumulto, do medo constante de não estar a aproveitar a vida como ela merece ser celebrada e compreendo, agora, que todos estes pontos de interrogação nasciam desta dormência emocional que, por sua vez, me levou à apatia e falta de vitalidade. Não posso dizer, porque não o sinto, que estive deprimida, mas também não posso negar que, provavelmente, andei lá perto. E ainda não estou bem, pelo contrário, este processo ainda agora começou. Mas como me disse a querida Sweet, somente a perceção desta necessidade de arrumação interna emocional, já é, por si só, um primeiro passo no meu processo de redescoberta. 

Não menos importante, compreendi a necessidade e urgência de movimento. De me mover, de cuidar do meu corpo, de fazer mais coisas que me dão prazer. Dei por mim a sentir vontade de rever os meus filmes preferidos, de ir fazer caminhadas na natureza pelo bem físico e mental que estas fazem ao meu corpo. Talvez por 2019 ter sido um ano de estagnação, 2020 tem tudo a ver com movimento, com fluidez, com retomar o curso natural das coisas, desbloqueando obstáculos e abrindo caminho. 

Como vos digo, 2020 vai ser um ano de emoções fortes. Já está a ser. Mas quando olho, pelo canto do ombro, para 2019, a paisagem desertificada e silenciosa das minhas emoções não é bonita. Pelo contrário, assusta pela ausência de cor, de brilho, de energia, de luz. É preciso rutura para deixar entrar novamente a luz, estou certa disso. E, pela primeira vez em muito tempo, sinto-me capaz de começar a quebrar para me poder reconstruir. 

02
Jan20

Everything will slide, Love will never die

girl

Ontem adormeci a pensar nas minhas avós, relembrando-as numa tentativa de as manter vivas em mim, resgatando-as do esquecimento que a morte traz consigo. Ao pensar nelas, pensei naquela fase distante da minha vida em que tudo era diferente. Regressei àqueles dias maravilhosos, que na altura me pareciam banais, em que elas existiam no plano físico e a sua presença era o suficiente para me sentir sempre protegida e em casa. Aos dias em que elas, cada uma à sua maneira, me amaram e me fizeram acreditar no mundo, inspirando-me com a sua força, determinação e garra. As minhas avós eram autênticas gladiadoras, mulheres de forças e armas, pilares fortes e densos da nossa família. 

Inevitavelmente, o meu coração apertou-se com as saudades. Saudades delas, saudades de mim, saudades desse tempo em que elas estavam cá e, só por isso, tudo era diferente e melhor. Este aperto adensa-se com o contraste gigante que existe entre a vida, nessa altura, e a vida agora. Como tudo se alterou, como todos os caminhos que pareciam certos se desvaneceram e nos levaram a um circuito labiríntico, que nos faz andar às voltas, sem encontrar a saída.

Não sei o que pensariam de tudo isto, bem não seria certamente. Sei que não poderiam inverter o rumo que os acontecimentos tomaram e sei, com segurança, que nada poderiam fazer para tornar a situação fácil. Mas também sei, com toda a certeza que existe no mundo, que tornariam tudo mais suportável. Que a sua presença, apenas, por ser tão forte, nos faria sentir um bocadinho menos perdidos, menos inseguros e mais capazes. Que o seu abraço, o seu colo, as suas sábias palavras tornariam toda a nossa realidade mais aceitável e menos negra. Porque esta é, talvez, a característica que mais associo aos avós, a todos no geral e aos meus em particular: a capacidade de nos fazer sentir protegidos, como se fossem o nosso escudo contra os males do mundo. A realidade não deixa de nos atingir, de nos provocar qualquer tipo de dano ou estrago, mas quando o faz, passou primeiro pela nossa bolha protetora. E quando nos trespassa, estão sempre, calorosos, com um abraço que nos desarma e nos faz encolher como se regressássemos à fase mais pura e inocente das nossas vidas. 

Avós, tenho saudades. A cada ano que passa, imagino como teria sido se estivessem cá. As alegrias, que celebraríamos juntas, as tristezas, que partilharíamos, juntas também. Aliás, juntas sempre. Tenho saudades. Acredito que algures saibam que a nossa vida só empobreceu com a vossa partida, abriu-se um vazio, uma espécie de buraco negro, impossível de preencher. Tenho sempre saudades vossas, mas, se for de alguma forma possível, acho que hoje tenho ainda mais um bocadinho, a somar à enorme quantidade de saudades que já sinto. E sabem? Não sinto apenas saudades vossas, sinto também saudades de quem eu era com vocês. Esse lado meu, chamemos-lhe assim, que foi com vocês, assim que decidiram embarcar. A única coisa que me aquece o coração é saber o quanto de vocês, que também ficou, comigo. 

28
Nov19

little girl blue

girl

Liga-me, atendo e segue-se aquela conversa rápida e desprovida de conteúdo, cuja duração não ultrapassa um minuto. Desligo e começo a chorar. Agradeço o facto de estar sozinha em casa, o que é raro, para chorar à vontade. Não é um choro compulsivo, mas correm-me as lágrimas pelo rosto e não as limpo. Deixo-as deslizar e sinto a forma como me arrefecem a face. Não dura muito tempo, mas dura o tempo suficiente para aliviar alguma dor que armazeno. 

De alguma forma, aquela chamada abriu qualquer coisa em mim. Descongelou um pedaço da dor que sinto e, em estado líquido, essa dor esmoreceu. Naquela sala, naquele momento, só existia eu e a minha tristeza. A casa estava silenciosa e a única luz emitida era a do candeeiro da mesinha de apoio. E ali estava eu, sentada no sofá, entregue às minhas lágrimas, a pensar em tudo e, ao mesmo tempo, em nada, limitando-me a sentir que as coisas mudaram. Sim, isto é importante: sentir que as coisas mudaram. Eu penso muitas vezes que as coisas mudaram, mas quase nunca o sinto. Seja porque não me permito senti-lo, seja porque não o consigo sentir. 

Não disse a ninguém, guardei-o para mim. Como digo muitas vezes (e escrevo outras tantas), sinto-me cansada deste assunto e de ser vítima deste acontecimento. Por isso, sinto que não me adiantaria de nada partilha-lo com alguém. É mais do mesmo e nada se altera. No entanto, por algum motivo, sinto que devo escrever sobre ele. Talvez por ter sido das primeiras vezes que me senti apenas triste. Normalmente, a raiva antecede a tristeza e, muitas vezes, só existe mesmo raiva. Mas desta vez foi diferente: só existiu tristeza.

E não consigo deixar de pensar o quão importante isso é. Significa que se inicia uma nova fase do meu luto. Não melhor nem pior do que qualquer outra, apenas mais uma fase necessária para ultrapassar este acontecimento. Sei que ainda irei chorar muito e em muitos outros momentos; sei o quão preciso de o fazer. Também sei como é difícil para mim, mas lá chegarei. Um dia tudo isto será apenas história. 

 

21
Nov19

Gostava de te dizer que

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Estou zangada contigo, zangada como nunca estive antes, como nunca estive com ninguém. Sinto raiva de ti. Quando me ligas, reviro os olhos e respiro fundo, tentando incutir alguma emoção à minha voz para não sentires o enorme esforço que tenho de fazer para falar contigo. Não me apetece falar contigo. Não me faças perguntas sobre o meu dia, não mostres interesse quando na verdade não o tens. Não forces mais as coisas nem as tornes mais insuportáveis do que elas já são. Vamos ser adultos e deixar-nos destes joguinhos de falsa preocupação.
Quando te ouço entrar em casa, o meu estômago contrai-se. Como se fosses um estranho a invadir a casa que outrora foi nossa, mas que hoje apenas me parece minha. Para ti, diria que é um hotel com pensão incluída. Ouço-te andar pela casa e desligo a luz, tão rápido quanto me é possível, para que não tenhas sequer a ideia de me ir chatear. Sim, chatear. Para ti é conversar, para mim, às onze e meia da noite, é chatear. Se quisesses conversar, chegasses mais cedo.
Quando me ligas a dizer que jantas connosco, apetece-me gritar tão alto até ficar sem voz. Gritar-te que não tens vergonha, gritar-te que não tens direito de comer connosco e que devias escavar um buraco para te esconderes. Em vez disso, digo que sim e desligo. Não tenho energia para gritar, embora não me falte vontade.
Ultimamente mal te vejo e mal dirigimos uma palavra. Sinto-me mal? Não. É assim que são as coisas, estou bem com isso. Cansa-me mais ter de representar um papel e fingir que está tudo bem quando claramente não está e tu és o culpado por isso.
Uma vez disseste-me que tinha de apoiar a mãe, ser amiga dela, aguentar. Apeteceu-me dar-te um murro na cara e mostrar-te o que é o verdadeiro apoio. Apeteceu-me provocar-te dor, mesmo sabendo que por mais que me esforçasse nunca sentirias na pele nem um terço do que ela sente diariamente. Gostas de dizer que, para ti, é uma situação complicada. E eu adoro contrariar-te e dizer-te que tu estás na posição mais fácil. Ficas confuso, a olhar para mim, e eu coloco a minha expressão mais dura e enfrento o teu olhar duvidoso. Queres apoio e validação, mas não é de mim que os terás.
Não te conheço. Não sei quem és e chego a duvidar se sempre foste assim ou se foste alvo de alguma lobotomia, que nos tivesse passado ao lado. Sinto saudades de quem eras, mas já não consigo dissociar essa saudade da dúvida se alguma vez chegaste a existir ou se eras uma mera construção da minha imaginação? Ainda assim, posso assegurar-te que nunca coloquei em causa o excelente pai que foste. Não o poderia fazer, porque gosto de ser justa e a verdade é que foste o melhor pai que eu poderia ter tido. Cheguei a travar batalhas com a mãe por causa desta questão, pois ela sentia que eu te preferia sempre a ti. Não sei se ela não terá razão: houve uma fase na minha vida que eu era incapaz de escolher entre vocês, gostava tanto de um como de outro e sentia que o que faltava num, estava presente no outro, por isso, saía sempre a ganhar.
Foste um pai presente, acompanhaste-me desde sempre e fui sempre uma filha orgulhosa por ter um pai como tu. Até ao dia em que percebi que vivas uma vida dupla e que eras mais mestre da manipulação do que muitos mágicos. Por um lado, penso que te apaixonaste por outra pessoa e que isso deve ser complicado; por outro, penso que nos escondeste durante meses esta realidade e viveste uma vida paralela, tratando-nos muitas vezes de forma incorreta e desleal. Não merecíamos isso, sobretudo quando andavas a aquecer a cama de outra pessoa e a estragar famílias.
Às vezes olho para ti e o meu coração fica do tamanho de uma ervilha, de tão contraído e apertado. Caramba, porque é que foste fazer isto? Será que não existe uma sinapse algures nessa cabeça oca que te faça ter uma iluminação e perceber que destruíste tudo e todos? Que jamais voltaremos a ter o que tínhamos? A ser o que éramos? Porque é que tinhas de estragar tudo?
Olho para ti e tenho pena. Sinto-me desiludida e magoada. Não demonstro mas preocupo-me contigo. Desligo as luzes quando chegas a casa, mas muitas vezes só me sinto totalmente tranquila quando sei que estás em casa. Tal e qual como quando era pequena. Ouvia-te chegar e sabia que podia dormir tranquila. O meu pai estava em casa, eu estava segura. Preocupo-me com a tua saúde, com o teu futuro. Preocupo-me que te sintas sozinho, que sintas que não gosto de ti, que sintas que perdemos o que quer que fosse que tivéssemos. Olho para ti e sinto falta da tua gargalhada, de te ver rir, de te ouvir contar piadas. Caramba pai, sinto que estamos os dois vivos, mas é como se ambos tivéssemos morrido e estivéssemos a viver a perda um do outro. Sinto a tua ausência como se fosse permanente, mesmo contigo ao meu lado. E tenho medo que este emaranhado de emoções mal resolvidas que carrego comigo me impeça de aproveitar todos os momentos felizes que poderíamos viver juntos. Tenho medo que este ressentimento nos afaste tanto, que nos leve para caminhos tão opostos, que um dia, quando efetivamente um de nós partir, não sobre mais nada a não ser arrependimento.
Pai, como é que eu vou fazer para te perdoar? Diz-me como é que eu posso perdoar o que nos fizeste. Sinto que me roubaste o presente e o futuro, deixando-me apenas com um passado de boas memórias. Levaste a minha liberdade, a minha capacidade de sonhar, a minha energia, a minha vitalidade. Deixaste-me, em troca,  medo, ansiedade e uma gigante responsabilidade: assegurar que a mãe não fica sozinha. Sabes que jamais a abandonaria, mas como posso avançar com a minha vida, sabendo que isso implicaria mais uma mudança radical na vida dela? Para que tu vivas o teu conto de fadas, eu vivo um pesadelo. Não consigo fazer nenhuma projeção do meu futuro, porque quando penso nisso vejo-a a ela, sozinha, desamparada, e aquela sensação de culpa que surge sempre associada à felicidade esmaga-me. É isso pai, como posso perdoar-te se agora, sempre que me sinto feliz, me sinto imediatamente culpada por estar feliz?
Estou cansada de dar importância a isto, de dar relevância, de sentir que nossas vidas giram sempre em torno disto e nunca saem deste ciclo. Gira o disco, toca o mesmo. Até escrever sobre isto me começa a saturar. Odeio este papel de vítima, de oprimida. Odeio multiplicar o negativismo, a dor, a desesperança. Mas quando tento furar caminho e abrir novos horizontes, a realidade cai-me em cima com força. E dói.
Pai, não sei o que mais te dizer. Acho que já disse tanto, creio que até já terei dito coisas que me arrependerei de ter dito. Porque apesar de tudo serás sempre meu pai, eu serei sempre tua filha e nunca deixarei de gostar de ti. Ou de me preocupar. Ainda que, pela forma como te trato, possas pensar o oposto. Tenta compreender que estou a tentar organizar tudo na minha cabeça e, mais importante, no meu coração. O golpe foi grande, duro e profundo. Dá-me tempo e espaço para cicatrizar esta ferida que ainda está aberta e arde. 

19
Nov19

numb

girl

"People often mistake numbness for nothingness, but numbness isn’t the absence of feelings; it’s a response to being overwhelmed by too many feelings." - Lori Gottlieb

 

É exatamente assim que me sinto a maior parte do tempo em relação ao que nos aconteceu. Anestesiada, adormecida, dormente. E quando não me sinto assim, sinto-me excessivamente zangada, como se uma fúria incontrolável e desmedida se apoderasse de mim, reagindo intempestivamente e exageradamente às situações. Racionalmente, sei que não há motivo para uma resposta tão exacerbada, mas emocionalmente é a única forma que encontro de reagir. E sei que este excesso está diretamente relacionado com o défice de outras emoções. Ou melhor, com o défice da sua expressão.
Porque quando penso nesta situação e no núcleo de pessoas que tem conhecimento sobre ela, à exceção de familiares, são apenas duas. E apenas com uma delas consigo realmente expressar as minhas emoções. Com a outra, apenas falo sobre o assunto, mas com um distanciamento tão grande que até parece que estou a falar de uma coisa na qual não estou envolvida. Gosto dessas conversas, porque me permitem pensar no assunto em voz alta e criar novas perspetivas, mas isso não é o que preciso. Não preciso de vestir novamente a capa de super heroína, como se isto não me afetasse como me afeta. Não preciso de usar sempre a carta da racionalidade e fazer-me de forte. Mas é o que acontece quase sempre.
Menos com ele. Com ele desabo e quando quero encontrar palavras para explicar o que sinto, não consigo. É como se qualquer pingo de lógica me abandonasse e não tenho qualquer oportunidade para me fazer de forte. Quando torno a mim, já estou envolvida nos seus braços, num abraço apertado e quente, que me sufoca qualquer tentativa de explicação. Na verdade, ele não precisa de explicações, ele está a par de todos os detalhes, mesmo os mais sórdidos e inacreditáveis. Ele não precisa de ouvir vezes e vezes sem conta o que esta situação me provoca, mas precisa de o ver. De testemunhar como isto me destruiu e de como ainda estou a tentar recolher todas as peças que outrora formavam a pessoa que eu era. Ele precisa disso. E eu também.
Sobretudo eu. Eu preciso de chorar, gritar, dizer asneiras, rasgar coisas, parti-las, o que for. Neste momento, sinto-me zangada. Muito zangada com tudo isto. Furiosa. Há momentos em que me sinto asfixiada pela forma como me sinto furiosa. Sobretudo quando tentam invadir o meu espaço. Ele já é tão reduzido e, ainda assim, tentam penetrar nessa bolha só minha, sem qualquer pedido ou cedência de autorização. Disse-vos que acordo sempre mais cedo do que a hora de que realmente preciso. Faço-o por todos os motivos que enumerei, mas não vos disse o principal: faço-o porque a essa hora ninguém que habita naquela casa está acordado para me chatear. Posso ser só eu e os meus pensamentos. Não há ninguém à minha volta, não há ninguém a dirigir-me perguntas essencialmente estúpidas às quais não tenho qualquer vontade nem paciência para responder. 

Porque depois das minhas explosões de fúria, segue-se a culpa. A sensação de que não tenho qualquer direito de reagir da forma como reajo. Esta é uma das principais características da minha baixa autoestima: achar sempre que não tenho direito a nada. Questiono-me sempre que direito tenho eu de ficar chateada, de me mostrar furiosa, de me expressar completamente. É como se não me autorizasse a expressar, porque sinto que não o mereço. É a coisa mais estúpida do mundo, eu sei, acreditem que sei. Trabalho nisto diariamente, mas nenhuma mudança é do dia para a noite. Expressar-me sem receios entra na categoria de ser vulnerável e isso é algo que só me permito ser com um número muito reduzido de pessoas. Os escolhidos. E mesmo com estes, nunca deixo de me perguntar: será que tenho direito?

A sensação de que os meus sentimentos podem invadir o espaço dos outros acompanha-me desde sempre. Porque eu sei que a maioria das pessoas não sabe lidar com os sentimentos dos outros nem com a sua manifestação. Eu, por outro lado, não tenho qualquer problema com isso. Sempre estive muito tranquila e recetiva a todo o tipo de reação e, confiem no que vos digo, é por ser assim que a maior parte das pessoas diz sentir-se bem comigo. Porque as sei colocar confortáveis de forma a que não sintam qualquer receio em serem elas mesmas e se expressarem. Mas, e isto vai ser um grande contrassenso, só sei ser assim para os outros, porque sei a dificuldade que sinto em fazê-lo! Por saber como é difícil para mim me abrir, revelar o que sinto, sentir-me confortável para o fazer é que sei criar as condições para que os outros o façam comigo. No entanto, quando é a minha vez de ficar do outro lado, hesito. Sei que não sou fraca nem frágil por chorar, por exemplo, mas por algum motivo não sou capaz de o fazer. Não porque seja forte, pelo contrário, considero-me patética e cobarde, porque sermos vulneráveis é um ato de coragem. Pelo menos, para mim é. 

Quando penso nesta situação merdosa em que o meu pai nos colocou e tento extrair as aprendizagens, quando tento ver o copo meio cheio, penso que esta situação pode ser o catalisador da minha mudança. Pode ser o estímulo que me faltava para começar a fustigar algumas crenças puramente irracionais e para me abrir. Para ser eu sem medos, sem "e se". 

Há pessoas que gostam de se sentir dormentes. Eu tenho medo desta anestesia emocional, sei que não é saudável. Sobretudo nos momentos em que tudo acontece muito rápido e dispara dentro de mim. Não estou em equilíbrio, mas sei que só estarei quando me permitir sentir tudo que há para sentir. À revolta e fúria posso fazer "check", mas ainda falta a pior e maior delas todas: a tristeza.