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Avó,
Já foram inúmeras as vezes que olhei para a data de hoje no calendário e pensei em ti. Pensei que foi neste dia, há precisamente 5 anos, que nos disseste adeus (ou até já) num sábado frio e solarengo. Lembro-me como se fosse hoje daquela sensação estranha e premonitória que percorreu o meu corpo segundos antes de entrar em casa e me cair o mundo em cima. De algum modo, que desconheço por completo, era como se eu já soubesse que já não estavas connosco. E não estavas, pelo menos na forma, no corpo, na matéria como te conhecíamos.
Torno a dizer-te que esbarrei tantas vezes na data de hoje e pensei em ti, avó. Mas tenho de te confessar que em nenhum momento me dediquei a pensar em ti só e exclusivamente, como tu mereces. Tenho dito e repetido a mim mesma, ao longo do dia, que esta data merece ser sentida e refletida como deve ser: com calma, tempo e amor. Quero dedicar-me a pensar em ti, em nós, na vida que partilhamos com toda a atenção do mundo, focando-me muito mais no que vivemos do que naquilo que deixamos por viver após a tua partida.
Sabes, avó, quando tento encontrar recordações de momentos vividos contigo em que não fui feliz, falho sempre redondamente. E acho que deve ser a ocasião em que mais adoro ser uma falhada! Talvez a única, para ser sincera. Porque não há uma única memória, nem sequer uma exceção que confirme a regra, em que eu não tenha sido feliz ao teu lado. Quer dizer, avó, haver, claro que há, mas são as memórias de quando estavas doente e essas não contam, porque não foste a culpada da minha infelicidade, tu estavas tão mais triste do que eu, tão mais desesperada. Essas memórias foram-nos impostas, não fomos nós que as criamos, por isso continuo a sentir que não houve um momento em que não me tenhas feito feliz.
E tu sabias tão bem como me fazer feliz. Era uma fórmula simples e que resultava sempre. Com as coisas pequenas, como a minha comida preferida, a cama sempre quentinha, os longos e aventureiros banhos de espuma, os desenhos animados nas manhãs de domingo, as torradas e o leite com chocolate, as palmadinhas de orgulho à medida que o meu corpo ia crescendo e me transformava numa menina-mulher, as idas ao sótão da tua casa que hoje vejo como era pequeno, mas naquela altura parecia-me gigantesco. Porque em cada uma destas pequenas coisas imprimias sempre tanto amor, tanto carinho e doçura. Num só abraço seguravas o mundo e fazias sentir-me intocável e protegida por uma força oculta e invisível.
E depois há outra coisa, avó. É que tu eras um terramoto, uma força incontrolável da natureza. Eu nunca conheci ninguém como tu, tão destemida, tão guerreira, tão senhora segura de si mesma. O orgulho que eu tenho em ti desde sempre. Se tu soubesses como eu falava de ti aos meus amigos, ficarias enternecida e perceberias que para mim sempre foste a super-mulher.
Hoje recordo-te por todas as coisas boas que nasceram da sorte de sermos neta e avó uma da outra. Estou em paz com a tua ausência, porque compreendi, não só com a cabeça, mas também (e sobretudo) com o coração, que vives em mim. Nunca estarás ausente enquanto continuares tão viva dentro de mim. Quando te vi naquele caixão, não derramei uma lágrima, porque aquele corpo já não eras tu, era apenas isso, um corpo. O que tu eras já não estava ali e, por isso mesmo, não eras, continuas a ser. Para mim continuas a ser, sempre serás. Claro que nunca deixarei de sentir que te perdi cedo demais, mas não seria sempre cedo demais? Não me farias sempre uma imensa falta e deixarias sempre uma excruciante saudade?
Avó, 5 anos longe de ti. Sabes do que sinto mais saudades? Dos teus abraços. Ainda não voltei a encontrar noutros braços o conforto e a inocência que encontrava sempre que me aprisionavas nos teus. Sinto que aquela menina pequena ficou para sempre amarrada num abraço teu. Um abraço casa, que em meros segundos transformava todo o restante dia.
Avó, gosto tanto de ti. E todos os dias luto contra a minha racionalidade para me convencer que um dia voltarei a encontrar esse abraço apertado e me sentirei novamente em casa, contigo. Era tudo o que mais queria.