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the old soul girl

the old soul girl

11
Nov19

uma discussão parva

girl

Casa cheia de amigos, jantarada, pessoal com vontade de sair e ela com uma apresentação importante no dia seguinte. A necessitar de todas as horas de sono e de toda a energia disponível para estar no seu melhor. O senão? Ficaria sozinha em casa. Para ele, era um claro dilema: queria ir com os amigos, aproveitar a noite que estava a ser tão divertida, mas a ideia de a deixar sozinha em casa não o agradava. Não que lhe fosse acontecer alguma coisa, mas custava-lhe pensar que ela ficaria sozinha enquanto todo o grupo se iria divertir. Uma parte de si queria ir, outra só queria enroscar-se com ela na cama e aproveitar o silêncio e a solidão da casa.
Ela era das teimosas. E, por muito que lhe custasse admitir, por vezes ainda esperava que os outros agissem como ela agiria. Traduzindo: racionalmente, queria que ele se fosse divertir e sabia que não havia nada nisso que a pudesse deixar chateada; emocionalmente, queria que ele fosse solidário e ficasse consigo em casa. Quando este tipo de dilemas nasce dentro de uma mulher, o resultado raramente é bom, porque a razão e a emoção confundem-se, manipulam-se e, às tantas, a discussão está instalada. Foi o caso deles.
Foi uma discussão do pior estilo que pode haver. Engane-se quem julga que as piores discussões são aquelas que envolvem gritos e portas a bater. Não, as piores são aquelas em que reina a ausência de palavras e se instala um silêncio ensurdecedor, capaz de ferir. A deles era assim: cada um para seu lado, calado, pensando até quando é que seria capaz de aguentar e não ceder. Nestas discussões, os níveis de orgulho disparam e ela sabia que não existia ser humano mais orgulhoso do que ele. A única exceção naquela noite foi que ela superou o seu recorde de orgulho e também não disse uma palavra.
Quando a porta de casa bateu e a algazarra se evaporou, ela entregou-se às lágrimas. Estava sozinha, ele tinha realmente ido. Sentiu-se estupidamente triste. Abandonada. Deitou-se com o coração pequeno, abraçado a si mesmo, revendo na sua mente a cena parva que tinha protagonizado momentos antes. Pensou em todos os lados, perspetivas, ângulos. Típico da sua pessoa, entregou-se à questão que aparecia sempre que discutia com alguém: será que tenho direito de ficar chateada?
A muito custo e depois de muitas lágrimas, adormeceu. Não esperava, contudo, ouvir a porta do seu quarto abrir a meio da noite e despertar com aquele som e toda aquela claridade. Ergueu-se, viu um vulto ao fundo do quarto, junto à porta, e tornou a deitar-se. Ela sabia que era ele. E se não sabia, estava prestes a descobrir, pois ele foi ter junto de si e fez-lhe uma festa pela cabeça, dando-lhe um beijo na testa.

Porque o orgulho já lhe tinha custado a noite, decidiu engoli-lo e puxou-o para si, afastando-se na cama, abrindo-lhe espaço para que se deitasse junto de si. Ele assim o fez, abraçando-a com carinho. Adormeceram nos braços um do outro, local onde pertenciam, onde sempre se encontravam e onde tudo se resolvia. Novamente, sem serem necessárias palavras nem argumentos. Num local onde a razão não é chamada, onde a emoção se inibe e apenas se abre espaço para o que há de mais puro e tonto: amor. 

11
Nov19

um sopro de esperança

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Ela tinha esperança de que as coisas se resolvessem. Acreditava em finais felizes e na velha máxima de que se não está tudo bem no final, então é porque o fim ainda não chegou. Esta visão romântica da vida, para uns lírica e ingénua, protegia-a da crueldade dos últimos acontecimentos. Ela sabia que as coisas se haviam transformado radicalmente, de tal forma que não era capaz de se lembrar da sua vida antes de tudo se ter descoberto. Era como se alguém tivesse espalhado um pó mágico e amnésico, que apagara qualquer memória e lembrança anterior àquele momento que mudou tudo na sua vida. Por vezes, dava consigo a falar sozinha e a pensar alto de que poderia estar traumatizada ou, num pensamento menos dramático, de que poderia estar a reprimir todas as recordações boas e saudáveis da sua família como era antes, de forma a proteger-se do choque com a realidade de que essa família se desmoronou e cujos alicerces ficaram de tal forma quebrados, que é impossível tornarem a erguer-se.
Mas, ainda assim, ela tinha esperança. Não queria que tudo voltasse a ser como antes. Porque se as coisas terminaram da forma que terminaram, é porque antes também já não estavam bem. Não sonhava com uma reconciliação, não achava possível nem positivo. Porque, lá no fundo, sabia que este acontecimento mau podia ser transformado numa bênção a longo prazo. Ainda faltava algum tempo e algum distanciamento para que se fosse possível compreender uma rutura desta origem como algo bom, mas ela sabia que, eventualmente, acabaria por acontecer.
O que ela esperava, de mãos juntas e dedos entre cruzados, era que cada pequena parte daquele conjunto que outrora se chamou família fosse capaz de se reconstruir. Que aquele acontecimento não definisse as suas vidas para sempre. Que se erguessem além disso e fossem, desde o sentido literal ao metafórico, capazes de avançar. De contar esta história sem pesar, vergonha, repulsa, raiva, tristeza.

Porque a ideia de carregarem este fardo para toda a vida esmagava-a. Ela queria ser apenas uma pessoa comum, a quem acontecem coisas boas e más. Esta era uma coisa má, mas era apenas isso: uma coisa que lhe acontecera. Como tantas outras podem acontecer desde que estejamos vivos. Esse era o sopro de esperança que a aquecia. 

11
Nov19

uma fruta mordida

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Nunca sei dizer qual é a minha estação favorita. Censurem-me pela indecisão, mas é extremamente difícil optar por uma preferida quando as quatro têm tantas maravilhas associadas.

É a primavera pela sua delicadeza. As flores, as árvores, os pássaros, tudo a retornar a um estado de graça, de abertura ao mundo. Fragrâncias, paletas de cheiros e cores, é adorável. 

É o verão pela sua energia. O calor, a liberdade, a sensação de felicidade instantânea. É a praia, o mar, os gelados, os dias longos e as noites quentes. 

É o outono pela sua beleza. Tons de verde, amarelo, vermelho, castanho misturam-se. É o ciclo da natureza a atuar, o momento de tudo regressar a si e preparar-se para a renovação. Tal como a própria vida.

É o inverno pela sua magia. O frio, a chuva, as árvores desnudas, as noites longas, os dias curtos. O calor de casa, o aconchego de uma bebida quente, as mantas e casacos. 

A natureza é tão bonita. Toda ela sincronizada numa sequência bem ensaiada e lógica. Como se se tratasse de uma dança, perfeitamente definida, em que a seguir a um passo se segue outro, e depois outro, sem nunca se parar de dançar e rodopiar ao som da música. 

Até a fruta dança ao sabor deste chamamento. Mas seria ingrato ser a fruta a desempatar a eleição da melhor estação, afinal há claramente duas estações privilegiadas neste campo: para mim, o verão e o outono.

As frutas de verão são doces, exóticas, sumarentas. O outono, por sua vez, é tímido neste campeonato, mas demonstra que não é preciso quantidade para se ter qualidade. Afinal, é ele o detentor das castanhas. Este fruto maravilhoso, cujo cheiro é capaz de nos fazer salivar sem sequer termos dado ainda uma mordidela. É aquela adrenalina de as descascar, ainda quentes, alternando entre a ânsia de as provar e as queimaduras de 1º grau provocadas pelo seu calor. São maravilhosas de qualquer forma e a cada mordida, instala-se uma sensação de aconchego, provocando ondas de satisfação.

Fazem parte das maravilhas da vida e, como tal, sempre que possível, devem ser saboreadas ao máximo. 

08
Nov19

tarde de domingo

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Ah, tardes de domingo! São tão agridoces, não são? Vivo-as com sentimentos contraditórios: a vontade de aproveitar ao máximo o pouco tempo que resta de fim de semana com a angústia de que a segunda-feira se aproxima a passos largos. São tardes que se querem aconchegantes, tranquilas e reparadoras. São tardes de descanso, de mentalização para mais uma semana de desafios. Sim, porque tudo que se quer ao domingo é paz, conforto e introspeção.
A minha vida antiga terminou numa tarde de domingo. À superfície, era mais uma como outras tantas tardes domingueiras. No entanto, a tempestade chegou sem aviso e, como tal, sem qualquer preparação, engolindo-nos nas ondas do desespero, da confusão e da incredulidade. E aquela tarde transformou-se de tal modo, que era indiferente se era domingo ou qualquer outro dia da semana.
Por isso, apesar de essa sombra perseguir as tardes de domingo, eu continuo a olhar para elas como uma oportunidade perfeita para ler, saborear um bom chá, fazer ronha no sofá, comer lanches maravilhosos, meditar sem temporizador, entre tantas outras atividades que me aquecem a alma, embrulhando-a num cobertor quente e confortável. Porque as tardes de domingo são para serem vividas a um ritmo vagaroso, lento, tranquilo. Que nos faça abrandar e saborear as riquezas da existência, que tantas vezes nos passam despercebidas na correria do dia a dia.

07
Nov19

não sou de intrigas

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Não sei se quero ouvir a resposta às minhas perguntas. Por um lado, porque acho que sei o que vou ouvir. Por outro, porque nem sequer tenho coragem para perguntar o que quer que seja, quanto mais ouvir do que daí poderá sair. E, o mais fundamental, não tenho a certeza se quero saber. 

Sempre foi um dos meus mecanismos de fuga: a ignorância. Quanto menos souber, mais feliz sou. O problema é que a minha mãe não pensa assim e todos os dias me faz questões, das mais sérias às mais mirabolantes, envolvida numa curiosidade que eu considero masoquista. Ela não entende que eu sou o oposto dela e que pretendo manter-me na minha bolha de ignorância.

Porque, sejamos sinceros, para que é que eu preciso de saber os detalhes? Em que é que isso me vai ajudar? Saber que ele continua envolvido com aquela pessoa que, em conjunto com ele, arruinaram a nossa família? Eu sei que continua e, honestamente, desejo que se mantenha assim por muito tempo. Podem achar estranho, mas o meu raciocínio é simples: se aniquilaram a nossa família e deram um tiro certeiro no peito de cada elemento que dela fazia parte, espero que, pelo menos, valha a pena. Ficaria muito mais frustrada se soubesse que a dor que carrego todos os dias foi apenas por um disparate em vão. 

O como e o porquê são questões fáceis de responder, até para mim que estou de fora do casal, mas dentro do sistema familiar. Já antevia este desfecho há muito tempo, mas, lá estava novamente a ignorância a entrar em ação, e fechei os olhos para não ver. Só que não é por não vermos que o problema deixa de existir. Ele continua lá, presente e firme, à espera do nosso pestanejar. Foi o que me aconteceu: evitei a todo o custo, mas no final, não tive outra escolha a não ser enfrentar a dura realidade. 

Porque eu fui chamada a essa realidade como um soldado é chamado a combater numa guerra. Não podia recusar nem apelar a qualquer desculpa. E tinha de ser combativa, porque a situação que encontrei em casa naquele dia era uma mistura de guerra e pós-guerra. As vítimas estavam lá e eu fazia parte delas. Mas, simultaneamente, também pertencia ao outro lado. O que tornou tudo ainda mais confuso e difícil. Como é que podemos estar nas duas frentes e ter espaço e tempo para assimilar tudo? 

Esta é a minha pergunta intrigante. A que ainda não consigo responder e, mais importante, com a qual ainda não sei lidar. 

06
Nov19

um gesto inspirador

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Na verdade não era um, eram vários. Todos os dias, mais do que uma vez, a qualquer momento, em qualquer lugar. Bastava estar-se atento para os detetar.

Era na chamada matinal, a acordar e dizer bom dia. Como era bom começar o dia e ser ele a primeira voz a ouvir. Era na boleia para o trabalho. O cuidado dele em ir busca-la à porta de casa sempre que estava a chover. Ou ir por determinado caminho para ela nunca chegar atrasada, mesmo que isso implicasse que ele chegasse. Eram todas as refeições que ele preparava. Mesmo quando estava cansado, sem vontade. Aquela comida maravilhosa que lhe aconchegava o estômago e aquecia a alma. Era o chá que lhe preparava sempre que ela pedia. Nunca dizia que não, mesmo que estivesse ocupado a fazer outra coisa. Era todo o conjunto de lanchinhos apetitosos que lhe levava a meio da tarde só para lhe adoçar a boca. Era a forma como lhe abria a porta do carro quando chovia, para que ela entrasse o mais rápido possível. Era a atenção com que a ouvia sempre que ela lhe lia um dos seus textos. Era a alegria dele perante as alegrias dela. Era a forma como a abraçava quando ela desabafava sobre o que se passava em casa. Ele sabia que não havia nada que pudesse fazer para alterar a sua situação, então confortava-a nos seus braços, dizendo-lhe sem palavras que, ali, era ele quem cuidava dela. Que ela podia desabar e deixar-se ser cuidada por alguém. Era a paciência dele para andar com ela por todo o lado quando ela precisava de tratar dos mais variados assuntos. Era o cuidado dele em comprar tudo o que ela gostava no supermercado para lhe fazer um bom pequeno-almoço. Era o zelo dele pelas coisas dela, como se fossem suas. Que, na verdade, eram. Era aquela necessidade de lhe tocar, às vezes para se assegurar de que ela estava ali, que era real. Os beijinhos, os abraços, todas as formas de toque como se fosse dois imans, a atrairem-se e unirem-se constantemente.
Eram todos estes gestos e muitos outros que a inspiravam. Porque a palavra "amo-te" é muito mais bonita quando é pronunciada sem recurso a palavras. E ele era exímio na arte de lhe mostrar o quanto a amava nos seus pequenos grandes gestos.

06
Nov19

Rotina matinal

girl

Hoje adormeci. O despertador tocou, ouvi-o e desliguei-o, na expectativa inocente de que me levantaria de seguida. Não aconteceu. Eu sei o motivo e sei de quem é a responsabilidade. Fiquei a ler pela noite dentro e a responsabilidade poderia ser unicamente minha, mas creio que o livro também deveria ter a sua quota parte. Afinal, se não fosse tão bom, eu não teria tanta dificuldade em parar de lê-lo ... 

Quando vi as horas, fiquei em sobressalto, mas felizmente deu para fazer dentro do tempo. Às vezes esqueço-me que, por norma, acordo bem mais cedo do que seria necessário e que, mesmo adormecendo como hoje, ainda fico com uma margem de tempo confortável para fazer tudo o que preciso. 

O dia abraçou-me chuvoso e frio. Arrefeceu bastante e já começa a saber bem usar roupas verdadeiramente quentes e usar e abusar da quantidade de chá. A chuva, miudinha, faz-me sentir vontade de regressar aos lençóis e ficar neles o dia todo, envolvida numa boa história. Como tal não é possível, penso que ao menos não sinto vontade de andar ao ar livre e, como tal, a ideia de estar todo o dia no escritório não é assim tão aborrecida. 

Sempre gostei mais de trabalhar nas estações frias. Não custa tanto estar fechada o dia todo e até sinto uma gratidão leve de pensar que posso estar recolhida e quentinha, enquanto algumas pessoas têm de enfrentar a chuva, o frio e o vento. Tudo na vida tem dois polos e acredito cada vez mais que depende de nós sintonizarmo-nos com o positivo. 

Tomo o pequeno-almoço, preparo a lancheira, tudo fica pronto e arrumado. Fico feliz por saber que vou almoçar uma comida de que gosto muito. Sei que pode parecer ridículo, mas trata-se de uma coisa maravilhosa: trazer uma comida da qual se gosta. É porque é logo um incentivo para nos sentirmos bem. Preparo o meu termo de chá (indispensável!) e sigo para a casa de banho.

Arranjo-me, sempre o mais simples possível, não fosse eu uma daquelas pessoas que até para colocar batom de cieiro precisa de ver um tutorial no youtube. Sempre fui assim: simples e descontraída. Mesmo nos dias em que capricho mais, nunca perco este conforto e simplicidade. Quando me maquilham, deixo de me reconhecer. Gosto de ter a cara lavada e é assim que me apresento ao mundo todos os dias. 

Casaco vestido, mala ao ombro, lancheira na mão e lá vou eu. Entro no carro, beijinho de bom dia ao meu amor e seguimos viagem. Há vários percursos até ao trabalho e, por norma, aprecio mais quando vamos pelo mais longo. É como um aquecimento, vou acordando para a cidade, observo as restantes pessoas nas suas rotinas matinais, uns a caminho o trabalho, outros a regressar de levar os filhos à escola. A cidade desperta e nós despertamos com ela. 

Quando chego, respiro fundo e sorrio. Mais um dia, cá vou eu. Nunca sei o que me espera nem o que vou encontrar. Não faz mal, não é exclusivo do trabalho, a vida é mesmo assim: uma surpresa. Sorrio pelo corredor, cumprimento colegas e amigos. Sento-me na minha área de trabalho, inspiro e expiro, começa oficialmente a jornada. Tenho no meu computador uma frase inspiracional, para me aquecer o coração nos dias mais difíceis:

The purpose of life is to enjoy every moment.

E é verdade. Grata por estar viva, por ter um emprego, por estar aqui. Polo positivo ligado. 

05
Nov19

um desafio empolgante

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Adorava aquela sensação de formigueiro e excitação que antecediam o momento de passar do plano à ação. Todas as ideias a fervilhar, a alta temperatura, na sua mente e aquela sensação de desnorte por não saber por onde começar.
Estava no comboio, de regresso a casa, após um longo dia. Tinha estado numa reunião importante para o seu projeto de tese e tinha adorado cada momento. Sentia o coração a transbordar do sentimento de estar no lugar certo, a fazer a coisa certa. Aquela era a sua paixão e sentia-se grata por ter a oportunidade de a seguir. Falava com a sua orientadora de tese sobre ideias, questões, possibilidades, desenhando aquele que seria o esboço da sua tese. Ainda existia um longo, gigante e dantesco caminho até chegar ao produto final, mas era esse o desafio: a jornada.
Ao contrário das suas colegas, que pensavam na tese de mestrado quase desde o primeiro dia de aulas, ela decidira que deixaria essa preocupação para quando fosse o momento certo. Haveria de chegar e ela, certamente, saberia como lidar com a situação. Porque é esta a complexidade de se ser uma contradição ambulante: embora tivesse uma mente hiperativa, haviam coisas que ela sabia colocar em espera e em suspenso até ser o momento adequado para lidar com elas. A tese era uma delas.
Quando chegou a altura de escolher tudo o que havia para escolher, ela optou por ouvir o coração e não o que as outras pessoas lhe diziam. Mais uma característica sua: tinha de ver, de ouvir, de sentir com os seus próprios sentidos para descobrir se o que outros diziam era realmente verdade; não gostava de se guiar pelos outros. Gostava de ser autora dos seus próprios julgamentos e esta situação não foi excepção. Escolheu a área, o tema, a orientadora, tudo, com base no que a apaixonava. Porque era simples: ela acreditava que quando se gosta de algo, essa paixão funciona como motivação em todos os momentos, bons e maus.
A primeira reunião de projeto foi incrível, porque a sua orientadora era uma sonhadora como ela. Tudo parecia possível e interessante de ser estudado! Mais tarde, veio a compreender que duas sonhadoras juntas não tornavam o projeto melhor, pelo contrário, podiam ser a razão do seu fracasso e forçou-se a ser realista e pragmática. No entanto, naquela primeira reunião, o coração galopava com a certeza de ter tomado a decisão certa.
Qualquer projeto é constituído por diferentes fases e etapas, sendo que nem todas são perfeitas (se é que alguma o é!). A sua tese confirmou a regra. Passou por momentos de algum desespero, sentiu-se perdida e desorientada múltiplas vezes, perdeu a conta à quantidade de energia que perdeu com revisões, alterações, aperfeiçoamentos. Foi um caminho conturbado, mas por mais difícil que estivesse a ser atravessá-lo, em paralelo havia uma sensação de deslumbramento e encantamento com todo o processo. Aquele era o seu projeto, a sua pequena contribuição científica e estava a adorar escreve-la. Guiava-se sempre pelo lema do grande Nelson Mandela "parece impossível até estar feito". Sabia que terminaria e quando esse dia chegasse valeria por cada momento menos bom.
Chegou o dia da entrega e, depois, mais importante, o dia da defesa. Tinha tanto medo de não defender o seu trabalho à altura, de deixar que os nervos se apoderassem de si e não a deixassem brilhar. Porque sabia que tinha um ótimo projeto e queria defende-lo com grandiosidade, com garra e determinação.

Não correu como esperava: superou qualquer expectativa. Apresentara o projeto como sonhara, com confiança e muita paixão. Porque era isso que sentia: sentia-se apaixonada pela sua criação. Tinha sido um desafio empolgante desde o primeiro minuto e, apesar de se ter confrontado com diversas adversidades, não conseguia deixar de se sentir orgulhosa. Por mais difícil que tivesse sido, tinha superado o desafio. Em grande, em beleza. Estava feito! 

05
Nov19

luto de um bom livro

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Estão familiarizados com aquela sensação de terem lido um livro tão bom, que vos prendeu desde a primeira página e cujas personagens transitaram de imediato para a vossa esfera, e não o conseguirem ultrapassar? De, por um lado, quererem avançar para uma nova leitura, mas por outro, sentirem-se ainda presos à história que terminaram recentemente de ler? Como se partir para um novo livro fosse uma espécie de traição para com o livro terminado? 

Que raio de luto é este? Esta sensação ora de vazio, ora de tristeza, ora de revolta? E quando chega a tranquila fase de aceitação? De que foi bom, maravilhoso, talvez do melhor que já lemos, mas que, como tudo na vida, teve o seu fim?

Quando leio um livro que me deixa neste estado de angústia, sem saber se devo avançar ou deixar-me estar, marinando nesta sensação de nostalgia e saudade, sei de imediato que jamais o esquecerei. É tal e qual uma morte: o livro termina, mas vive para sempre dentro de nós. 

04
Nov19

um medo forte

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Existiam duas pessoas, distintas, antes e depois do medo. A primeira era luz, a segunda escuridão. A primeira era liberdade, a segunda controlo. A primeira vivia, a segunda pensava em viver, mas tinha demasiado medo para arriscar e sair da sua zona de conforto. A primeira dizia sim, a segunda não. A primeira era o copo meio cheio, a segunda era o copo vazio. 

Como é que ela se tinha transformado naquela pessoa? Onde é que estavam todas as características que ela tanto apreciava e, julgava, a definiam? Para onde tinha ido a sua energia e confiança no mundo? E como as poderia recuperar?

Era este ciclo repetitivo de questões e dúvidas que ocupava o seu pensamento a maior parte do tempo. Cada tarefa era alvo de uma intensa análise, medindo prós e contras, avaliando se era ou não capaz. Eram sobretudo as dúvidas acerca de si mesma que a aborreciam. Aquele constante diálogo interno que teimava em não cessar acerca de ela ser ou não ser capaz. Quase sempre terminava com ela a acreditar que não era. E, novamente, confinada no seu mundo interior, abafado e cinzento.

Não se reconhecia. Ela era apenas uma sombra disforme da pessoa que costumava ser. Não tinha sido esta pessoa com quem ela tinha sonhado ser. Não era esta versão. Não, esta estava toda errada. Tinha tudo que ela mais temia: medo, insegurança, dependência, ansiedade. Ela não queria ser esta pessoa.

E, neste momento, já nem precisava de ser a sua versão idealizada. Bastava-lhe recuar no tempo e ser quem ela era antes do medo se apoderar de cada célula do seu corpo. Medo do que pode acontecer, mas acima de tudo, medo de não ser capaz de lidar com tudo o que pode acontecer. Era aí que residia a fonte de todo o seu sofrimento. Ela tinha medo do medo. Medo de não ser capaz de o enfrentar. Medo de ficar bloqueada, medo de ser vulnerável, medo de errar, medo de não ser corajosa. 

Nos piores cenários que idealizava, a cena podia mudar de ambiente, de personagens, mas uma coisa nunca mudava: consistia sempre em sentir-se perdida, sem qualquer controlo sobre a situação e a desaparecer dentro de si mesma, sendo completamente absorvida pelo medo. Nesses cenários tenebrosos, procurava sempre um ponto de fuga. Uma saída de emergência.

Era por isso que, para si, era sempre tão importante identificar todas as saídas possíveis. Antes de começar alguma coisa, tinha de se certificar de que existia forma de se escapulir caso sentisse necessidade. Precisava de saber que existiam portas, janelas, frestas por onde ar fresco poderia entrar e ela poderia sair. Porque quando o medo a atacava, o modo fuga ativava-se imediatamente e ela só queria correr o mais rápido possível para um lugar escondido, encolher-se entre as suas pernas, fechando os olhos e retomando o ritmo da sua respiração. 

O medo condicionava-a e ela sabia. Isso só a fazia sentir-se ainda mais cobarde e odiar um pouco mais a sua fraqueza. Passara a invejar os aventureiros e corajosos desta vida, que partem com uma mala às costas e seguem caminho, sem sequer pensar nas mil e quinhentas coisas que lhes podem acontecer. Como ela invejava os confiantes, que caminham seguros de si, da sua verdade e não receiam mostrar-se ao mundo como são. Ah e os serenos? Esses ocupavam o topo máximo da sua pirâmide de inveja. Essas eram as pessoas verdadeiramente felizes: as que conseguem reunir sempre calma e paz dentro de si mesmos para lidar com o caos que vai fora de si.

O seu problema é que o caos, infelizmente, estava instalado dentro dela. Ela sabia que cá fora estava tudo bem, por dentro é que estava tudo caótico. Era esse desassossego, essa inquietação que a perseguiam. E se, de início, ela tentara ignorar e suprimir os seus efeitos, agora já tinha compreendido que de nada lhe valia. Porque quanto mais tentava ignorar, mais crescia a sensação de fracasso e terror dentro de si. Era como se todas as tentativas de resistência fossem água e adubo para as sementes do medo. 

Agora restava-lhe o quê? Sabia que dificilmente tornaria a ser pessoa que era, antes do mundo se ter tornado num lugar assustador e pouco confiável. Tinha visto e sentido demasiadas coisas para as conseguir ignorar e regressar à sua vida passada. Bastava-lhe acreditar que se iria tornar numa pessoa melhor. Naquele tipo de pessoas que passam pelas grandes adversidades da vida, sentindo o terror de perto e, no meio da escuridão, são capazes de traçar o caminho até à luz. Aquele tipo de pessoas que, por conhecer o medo de perto, deixam de o temer. Pois percebem que o medo é uma emoção como outra qualquer e se não temos medo da felicidade, não temos de temer de o medo. Pessoas que fazem do medo companheiro de viagem, mas não o deixam ser o guia da mesma. 

Sim, era nessa pessoa que ela queria transformar-se. Antes ela não sentia medo e sentia-se corajosa. Mas, na verdade, talvez ela não fosse assim tão corajosa, pois nunca tinha enfrentado nenhum medo. Agora, pela primeira vez na vida, estava a ter a oportunidade de o ser, porque tinha um medo para superar. E ser corajoso é isso, não é? Ir com medo, mas ir. Não é ausência do medo, mas a capacidade de agir mesmo estando cheia dele. Sim, ela queria ser uma dessas pessoas. As corajosas. 

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