uma discussão parva
Casa cheia de amigos, jantarada, pessoal com vontade de sair e ela com uma apresentação importante no dia seguinte. A necessitar de todas as horas de sono e de toda a energia disponível para estar no seu melhor. O senão? Ficaria sozinha em casa. Para ele, era um claro dilema: queria ir com os amigos, aproveitar a noite que estava a ser tão divertida, mas a ideia de a deixar sozinha em casa não o agradava. Não que lhe fosse acontecer alguma coisa, mas custava-lhe pensar que ela ficaria sozinha enquanto todo o grupo se iria divertir. Uma parte de si queria ir, outra só queria enroscar-se com ela na cama e aproveitar o silêncio e a solidão da casa.
Ela era das teimosas. E, por muito que lhe custasse admitir, por vezes ainda esperava que os outros agissem como ela agiria. Traduzindo: racionalmente, queria que ele se fosse divertir e sabia que não havia nada nisso que a pudesse deixar chateada; emocionalmente, queria que ele fosse solidário e ficasse consigo em casa. Quando este tipo de dilemas nasce dentro de uma mulher, o resultado raramente é bom, porque a razão e a emoção confundem-se, manipulam-se e, às tantas, a discussão está instalada. Foi o caso deles.
Foi uma discussão do pior estilo que pode haver. Engane-se quem julga que as piores discussões são aquelas que envolvem gritos e portas a bater. Não, as piores são aquelas em que reina a ausência de palavras e se instala um silêncio ensurdecedor, capaz de ferir. A deles era assim: cada um para seu lado, calado, pensando até quando é que seria capaz de aguentar e não ceder. Nestas discussões, os níveis de orgulho disparam e ela sabia que não existia ser humano mais orgulhoso do que ele. A única exceção naquela noite foi que ela superou o seu recorde de orgulho e também não disse uma palavra.
Quando a porta de casa bateu e a algazarra se evaporou, ela entregou-se às lágrimas. Estava sozinha, ele tinha realmente ido. Sentiu-se estupidamente triste. Abandonada. Deitou-se com o coração pequeno, abraçado a si mesmo, revendo na sua mente a cena parva que tinha protagonizado momentos antes. Pensou em todos os lados, perspetivas, ângulos. Típico da sua pessoa, entregou-se à questão que aparecia sempre que discutia com alguém: será que tenho direito de ficar chateada?
A muito custo e depois de muitas lágrimas, adormeceu. Não esperava, contudo, ouvir a porta do seu quarto abrir a meio da noite e despertar com aquele som e toda aquela claridade. Ergueu-se, viu um vulto ao fundo do quarto, junto à porta, e tornou a deitar-se. Ela sabia que era ele. E se não sabia, estava prestes a descobrir, pois ele foi ter junto de si e fez-lhe uma festa pela cabeça, dando-lhe um beijo na testa.
Porque o orgulho já lhe tinha custado a noite, decidiu engoli-lo e puxou-o para si, afastando-se na cama, abrindo-lhe espaço para que se deitasse junto de si. Ele assim o fez, abraçando-a com carinho. Adormeceram nos braços um do outro, local onde pertenciam, onde sempre se encontravam e onde tudo se resolvia. Novamente, sem serem necessárias palavras nem argumentos. Num local onde a razão não é chamada, onde a emoção se inibe e apenas se abre espaço para o que há de mais puro e tonto: amor.