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the old soul girl

the old soul girl

28
Nov19

little girl blue

girl

Liga-me, atendo e segue-se aquela conversa rápida e desprovida de conteúdo, cuja duração não ultrapassa um minuto. Desligo e começo a chorar. Agradeço o facto de estar sozinha em casa, o que é raro, para chorar à vontade. Não é um choro compulsivo, mas correm-me as lágrimas pelo rosto e não as limpo. Deixo-as deslizar e sinto a forma como me arrefecem a face. Não dura muito tempo, mas dura o tempo suficiente para aliviar alguma dor que armazeno. 

De alguma forma, aquela chamada abriu qualquer coisa em mim. Descongelou um pedaço da dor que sinto e, em estado líquido, essa dor esmoreceu. Naquela sala, naquele momento, só existia eu e a minha tristeza. A casa estava silenciosa e a única luz emitida era a do candeeiro da mesinha de apoio. E ali estava eu, sentada no sofá, entregue às minhas lágrimas, a pensar em tudo e, ao mesmo tempo, em nada, limitando-me a sentir que as coisas mudaram. Sim, isto é importante: sentir que as coisas mudaram. Eu penso muitas vezes que as coisas mudaram, mas quase nunca o sinto. Seja porque não me permito senti-lo, seja porque não o consigo sentir. 

Não disse a ninguém, guardei-o para mim. Como digo muitas vezes (e escrevo outras tantas), sinto-me cansada deste assunto e de ser vítima deste acontecimento. Por isso, sinto que não me adiantaria de nada partilha-lo com alguém. É mais do mesmo e nada se altera. No entanto, por algum motivo, sinto que devo escrever sobre ele. Talvez por ter sido das primeiras vezes que me senti apenas triste. Normalmente, a raiva antecede a tristeza e, muitas vezes, só existe mesmo raiva. Mas desta vez foi diferente: só existiu tristeza.

E não consigo deixar de pensar o quão importante isso é. Significa que se inicia uma nova fase do meu luto. Não melhor nem pior do que qualquer outra, apenas mais uma fase necessária para ultrapassar este acontecimento. Sei que ainda irei chorar muito e em muitos outros momentos; sei o quão preciso de o fazer. Também sei como é difícil para mim, mas lá chegarei. Um dia tudo isto será apenas história. 

 

27
Nov19

it's not your business

girl

Um dos problemas das pessoas genuinamente preocupadas com os outros é que assumem que o bem-estar e felicidade dos outros é da sua responsabilidade. Não se trata de simplesmente se preocuparem, ultrapassa essa fronteira e chega ao ponto de sentirem, na sua pele, que é um dever seu lutar para que os outros estejam bem e satisfeitos, quase como se se tratasse do seu próprio bem-estar. Como é que eu sei isto? Porque, para o bem e para o mal, faço parte deste grupo de "responsáveis anónimos" e, confesso-vos, há momentos em que preferia viver focada apenas no meu mundo. 

O pior de sentirmos este dever não é apenas o peso da responsabilidade, mas também as consequências que dela advêm. Posso dar-vos um exemplo mais claro do que me refiro: é frequente as pessoas me procurarem para falarem dos seus problemas. Tudo bem, estou sempre disponível para ouvir, inclusive quando não estou. Mas ouço. E envolvo-me. Absorvo aquelas energias e não interpretem isto como uma treta cósmica e astrológica: absorvo os problemas dos outros porque me preocupo e porque a minha empatia gosta de me lixar e, de repente, já sinto que não é apenas aquela pessoa que tem um problema para resolver, somos duas e temos de o resolver. Estão a ver a estupidez? Pronto, é assim que é viver na minha pele.

Nesta ânsia de ajudar e resolver e fazer e acontecer, acabo sempre por me envolver em situações desnecessariamente. Chego-me à frente para falar pelos outros, procuro formas de os ajudar, às vezes até coloco o meu pescoço na guilhotina a custo zero e, ultimamente, tenho pensado que isto não está certo. Não apenas pelos motivos óbvios de não ser um problema meu e não ter de ser eu a resolver, mas essencialmente pelo desgaste e sufoco que esta responsabilidade me traz. Responsabilidade que assumo sempre como minha embora não o seja! 

Racionalmente, consigo perceber que nada disto faz sentido. Mas no plano emocional a minha vontade de ajudar e, muitas vezes, de salvar os outros é mais rápida do que qualquer pensamento lógico. E, por favor, não interpretem estas palavras como um discurso de heroína e aí eu é que faço e ajudo. Não estou a dizer nada disto nesse sentido e preciso de esclarecer bem isso, até para mim mesma. É um facto de que gosto genuinamente de ajudar os outros e os ver bem. E também não é menos verdade que todos os dias recorrem a mim diversas pessoas nessa busca de que eu faça alguma coisa por elas. Nem que seja ouvir. Por isso, junta-se a fome à vontade de comer, percebem?

Só que isto está a deixar-me sem ar. E a complicar-me a vida. Porque raio é que eu tenho de achar que tenho sempre de socorrer todos? Porque é que visto esta capa de responsabilidade que não me serve nem me pertence? Porque é que tenho esta tendência de pensar sempre nos outros em primeiro lugar? E porque é que escrever isto me envergonha tanto quando não é nada de grave ou alvo de vergonha? 

Há vários motivos. Primeiro, ser filha de quem sou. A minha mãe é a pessoa mais cuidadora do mundo que eu conheço. E eu tenho a maior sorte do mundo por ser sua filha e ter sentido, desde o primeiro suspiro, todo este cuidado e preocupação. Cresci com este modelo: é assim que devemos tratar os outros. Devemos preocupar-nos com o seu bem-estar. Alguém está com algum problema? Sente-se mal? Oferecemos ajuda. Chegamo-nos à frente. Não vos consigo enumerar a quantidade de vezes que vi a minha mãe vestir a sua capa de super-mulher e ir ao auxílio das mais diversas pessoas. Sem hesitar, sem pensar se seria conveniente ou não para si. 

Segundo, porque eu própria sou uma cuidadora. Se gostarem de simplificações, podemos compreender as pessoas em dois grupos: os caregivers e os caretakers. Os que cuidam e os que são cuidados. E eu faço parte dos primeiros. É a minha natureza, não há como fugir. Até porque quando tentam cuidar de mim, ofereço alguma resistência, estranho. Não estou habituada a isso, embora haja tanta gente em meu redor que me trata bem e se preocupa comigo. Simplesmente, não sinto que seja esse o meu papel. 

Terceiro, porque com todos os acontecimentos que ocorreram cá em casa, este traço ainda se acentuou mais. Esta necessidade de salvamento, de ver as pessoas bem. Todos os dias penso neste papel que agora me pertence com mais afinco. Basta olhar para a minha mãe. Começo a sentir um arrepio que percorre todo o meu corpo, é o sussurrar da responsabilidade. É o sentido de que não lhe posso falhar, não a posso deixar cair. Ela conta-me qualquer coisa que o meu cérebro leia como ameaça e lá estou eu preparada para a neutralizar de imediato. 

Algo tão digno e nobre não deveria preocupar-me. Afinal, quem corre por gosto não se cansa, não é o que dizem? Mas eu sinto-me cansada. E, pior do que me sentir cansada, sinto-me asfixiada. Sentir que a cada passo que dou tenho de me preocupar se não estarei a deixar ninguém para trás. Sentir que quero abrir as minhas asas e voar, mas que esse movimento de liberdade pode custar a felicidade de alguém. Ou, mais simples do que isto, sentir que se alguém conta comigo, não o posso desiludir. Não posso ouvir os seus problemas e agir como se não soubesse de nada, como se isso não fosse também da minha responsabilidade ...

Só que é isto que está mal. A maioria das coisas que me preocupam não são da minha responsabilidade. Sou eu que as considero minhas, ainda que saiba que não o são. Isto está a ser um desabafo estranho, confuso e quase esquizofrénico, eu sei. Mas serve para vos ilustrar a dualidade e o conflito de pensamentos que me invadem. É este debate entre o que está certo e errado, o que devo ou não devo fazer, o que é meu e o que não é. Este conflito interno que joga com muitas crenças, valores, experiências, emoções. Não é fácil para mim ser a mediadora deste conflito, porque não estou de fora, infelizmente estou bem dentro. 

Por isso, escrevo. Na esperança de que ao por tudo cá fora, diante dos meus olhos, na ponta dos meus dedos, encontre algum sentido. Porque eu gosto de ver os outros bem. Gosto de ajudar. Contem comigo, eu estarei sempre lá. Mas preciso de definir limites e não me envolver demasiado em coisas que não me pertencem. Preciso de dosear esta vontade de cuidar e ajudar, porque ao fazê-lo não estou certamente a cuidar e a ajudar a pessoa que mais precisa e que deveria estar sempre em primeiro lugar: eu mesma. 

 

25
Nov19

gente mesquinha

girl

Haja cada vez mais paciência e imunidade para lidar com a mesquinhez humana. Não digo que todos temos de nos ajudar e sermos os melhores amigos, mas já seria bom se não nos tentássemos prejudicar deliberadamente. 

O mundo provavelmente sempre foi assim, mas eu tive a sorte de viver numa bolha protegida durante a maior parte da minha vida. Foi preciso chegar ao mercado de trabalho para que a bolha rebentasse e me pudesse aperceber que as pessoas são mais como a minha mãe me dizia que eram do que eu poderia alguma vez imaginar. 

Hoje é um daqueles dias em que sinto que paciência não é suficiente. É preciso todo um antídoto contra gente estúpida, mesquinha e que se preocupa mais com o trabalho dos outros do que com o seu. O que me vale é pensar que já falta menos de uma hora para me por andar daqui e saber que nem todas as pessoas com quem trabalho, felizmente, são desta natureza rara. Ah, e claro, saber que mal ponha os pézinhos fora daqui, posso regressar à minha bolha. Porque apesar de testemunhar o que de pior há nas pessoas, continuo a preferir focar-me no que há de melhor. A única questão é que nem todas as pessoas valem a pena esse esforço e estas certamente não valem. 

Só lamento dedicar-lhes alguma atenção a escrever estas palavras. Mas foi mais forte do que eu, até porque se não escrever, não sei como poderei canalizar esta frustração. Quer dizer, provavelmente até sei, mas poderia valer-me um processo disciplinar com vista a despedimento. E isso sim, seria dar-lhes toda uma importância que não têm nem merecem!

22
Nov19

rescaldo final

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Estando oficialmente terminado o desafio de 30 dias de escrita, posso fazer uma reflexão acerca do mesmo, como uma espécie de rescaldo. Em traços gerais, considero que o desafio foi concluído com sucesso porque escrevi acerca de todos os itens propostos, embora confesse que nem sempre o fiz no dia em que era suposto. Isto aconteceu quase sempre aos fins de semana, porque tento estar afastada do computador o máximo possível já que passo a semana em frente a um. E, admito, aconteceu também num item ou dois por falta de inspiração, precisando de mais tempo para escrever alguma coisa coerente. 

Comecei este desafio com o objetivo de fazer dele um exercício de escrita criativa. Inicialmente, a minha ideia era escrever ficção, usando como tema de inspiração os diferentes temas propostos. Queria explorar a minha imaginação e capacidade de escrever num registo completamente antipessoal, distanciando-me o máximo possível de mim e das minhas vivências. Como poderão já ter reparado, caso tenham acompanhado o desafio, isto nunca aconteceu. Todos os trinta textos foram escritos com base em experiências reais e um conjunto de sentimentos que me pertencem. 

Creio que falhei o meu objetivo porque, se inicialmente o desafio seria um exercício de escrita, rapidamente se transformou num exercício terapêutico. Eu precisava de escrever sobre uma data de coisas que me estavam a incomodar e a remoer cá dentro. E, curiosamente, a cada tema proposto, encontrava sempre um caminho até ao que precisava de escrever para me sentir melhor comigo mesma. Posso dizer que o que perdi em criatividade, ganhei em sanidade mental. Algumas gavetas da minha cabecinha ficaram melhor arrumadas depois de ter despejado tudo que estava dentro delas nos meus textos e lhes ter dado uma nova configuração. 

Outro aspeto de que me apercebi no decorrer do desafio foi de como a escrita pode ser um talento, mas que sem prática nunca poderá evoluir e tornar-se em algo realmente bom. Atenção, não quero ser mal interpretada, não me considero dotada nem penso em mim como uma escritora, mas a verdade é que escrever todos os dias tornou a minha escrita mais fluída e dinâmica. Muitos textos foram escritos em menos de 10 minutos, porque uma vez que me lançava às palavras, a magia acontecia e encontrava o meu ritmo rapidamente. Gostei desta sensação de estar a aprimorar a minha escrita e gostei ainda mais de ter algo que me obrigava a escrever todos os dias. 

Não posso deixar de referir, ainda no registo terapêutico, o bem que este desafio me fez. Na procura de inspiração para explorar os diferentes temas sugeridos, dei comigo a reviver memórias antigas, a vasculhar no meu sótão cerebral por recordações deliciosas, que me transportaram para outros tempos, em que fui muito feliz. Todos os textos escritos sobre a minha infância são exemplos claros destas viagens feitas ao passado que me aqueceram o coração. Cada item proposto fez-me pensar em experiências vividas e, ao fazê-lo, revivi-as. Nem sempre perdemos tempo a revisitar os melhores momentos do nosso passado e este desafio foi uma boa oportunidade para o fazer.

Gosto de me desafiar a experimentar coisas novas e, como tal, o saldo final desta experiência só pode ser positivo. Acho que até terei alguma dificuldade em saber sobre o que escrever, agora que já não tenho aquele auxiliar fantástico que me fazia focar num tema específico. Gostaria de tentar, no futuro, repetir um desafio deste género e aí sim, focar-me somente na escrita criativa. Mas percebi que precisava de mergulhar primeiro no meu mundo e só depois ir à conquista de outros, de explorar primeiro o real para depois ir à descoberta do fantástico. 

21
Nov19

Gostava de te dizer que

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Estou zangada contigo, zangada como nunca estive antes, como nunca estive com ninguém. Sinto raiva de ti. Quando me ligas, reviro os olhos e respiro fundo, tentando incutir alguma emoção à minha voz para não sentires o enorme esforço que tenho de fazer para falar contigo. Não me apetece falar contigo. Não me faças perguntas sobre o meu dia, não mostres interesse quando na verdade não o tens. Não forces mais as coisas nem as tornes mais insuportáveis do que elas já são. Vamos ser adultos e deixar-nos destes joguinhos de falsa preocupação.
Quando te ouço entrar em casa, o meu estômago contrai-se. Como se fosses um estranho a invadir a casa que outrora foi nossa, mas que hoje apenas me parece minha. Para ti, diria que é um hotel com pensão incluída. Ouço-te andar pela casa e desligo a luz, tão rápido quanto me é possível, para que não tenhas sequer a ideia de me ir chatear. Sim, chatear. Para ti é conversar, para mim, às onze e meia da noite, é chatear. Se quisesses conversar, chegasses mais cedo.
Quando me ligas a dizer que jantas connosco, apetece-me gritar tão alto até ficar sem voz. Gritar-te que não tens vergonha, gritar-te que não tens direito de comer connosco e que devias escavar um buraco para te esconderes. Em vez disso, digo que sim e desligo. Não tenho energia para gritar, embora não me falte vontade.
Ultimamente mal te vejo e mal dirigimos uma palavra. Sinto-me mal? Não. É assim que são as coisas, estou bem com isso. Cansa-me mais ter de representar um papel e fingir que está tudo bem quando claramente não está e tu és o culpado por isso.
Uma vez disseste-me que tinha de apoiar a mãe, ser amiga dela, aguentar. Apeteceu-me dar-te um murro na cara e mostrar-te o que é o verdadeiro apoio. Apeteceu-me provocar-te dor, mesmo sabendo que por mais que me esforçasse nunca sentirias na pele nem um terço do que ela sente diariamente. Gostas de dizer que, para ti, é uma situação complicada. E eu adoro contrariar-te e dizer-te que tu estás na posição mais fácil. Ficas confuso, a olhar para mim, e eu coloco a minha expressão mais dura e enfrento o teu olhar duvidoso. Queres apoio e validação, mas não é de mim que os terás.
Não te conheço. Não sei quem és e chego a duvidar se sempre foste assim ou se foste alvo de alguma lobotomia, que nos tivesse passado ao lado. Sinto saudades de quem eras, mas já não consigo dissociar essa saudade da dúvida se alguma vez chegaste a existir ou se eras uma mera construção da minha imaginação? Ainda assim, posso assegurar-te que nunca coloquei em causa o excelente pai que foste. Não o poderia fazer, porque gosto de ser justa e a verdade é que foste o melhor pai que eu poderia ter tido. Cheguei a travar batalhas com a mãe por causa desta questão, pois ela sentia que eu te preferia sempre a ti. Não sei se ela não terá razão: houve uma fase na minha vida que eu era incapaz de escolher entre vocês, gostava tanto de um como de outro e sentia que o que faltava num, estava presente no outro, por isso, saía sempre a ganhar.
Foste um pai presente, acompanhaste-me desde sempre e fui sempre uma filha orgulhosa por ter um pai como tu. Até ao dia em que percebi que vivas uma vida dupla e que eras mais mestre da manipulação do que muitos mágicos. Por um lado, penso que te apaixonaste por outra pessoa e que isso deve ser complicado; por outro, penso que nos escondeste durante meses esta realidade e viveste uma vida paralela, tratando-nos muitas vezes de forma incorreta e desleal. Não merecíamos isso, sobretudo quando andavas a aquecer a cama de outra pessoa e a estragar famílias.
Às vezes olho para ti e o meu coração fica do tamanho de uma ervilha, de tão contraído e apertado. Caramba, porque é que foste fazer isto? Será que não existe uma sinapse algures nessa cabeça oca que te faça ter uma iluminação e perceber que destruíste tudo e todos? Que jamais voltaremos a ter o que tínhamos? A ser o que éramos? Porque é que tinhas de estragar tudo?
Olho para ti e tenho pena. Sinto-me desiludida e magoada. Não demonstro mas preocupo-me contigo. Desligo as luzes quando chegas a casa, mas muitas vezes só me sinto totalmente tranquila quando sei que estás em casa. Tal e qual como quando era pequena. Ouvia-te chegar e sabia que podia dormir tranquila. O meu pai estava em casa, eu estava segura. Preocupo-me com a tua saúde, com o teu futuro. Preocupo-me que te sintas sozinho, que sintas que não gosto de ti, que sintas que perdemos o que quer que fosse que tivéssemos. Olho para ti e sinto falta da tua gargalhada, de te ver rir, de te ouvir contar piadas. Caramba pai, sinto que estamos os dois vivos, mas é como se ambos tivéssemos morrido e estivéssemos a viver a perda um do outro. Sinto a tua ausência como se fosse permanente, mesmo contigo ao meu lado. E tenho medo que este emaranhado de emoções mal resolvidas que carrego comigo me impeça de aproveitar todos os momentos felizes que poderíamos viver juntos. Tenho medo que este ressentimento nos afaste tanto, que nos leve para caminhos tão opostos, que um dia, quando efetivamente um de nós partir, não sobre mais nada a não ser arrependimento.
Pai, como é que eu vou fazer para te perdoar? Diz-me como é que eu posso perdoar o que nos fizeste. Sinto que me roubaste o presente e o futuro, deixando-me apenas com um passado de boas memórias. Levaste a minha liberdade, a minha capacidade de sonhar, a minha energia, a minha vitalidade. Deixaste-me, em troca,  medo, ansiedade e uma gigante responsabilidade: assegurar que a mãe não fica sozinha. Sabes que jamais a abandonaria, mas como posso avançar com a minha vida, sabendo que isso implicaria mais uma mudança radical na vida dela? Para que tu vivas o teu conto de fadas, eu vivo um pesadelo. Não consigo fazer nenhuma projeção do meu futuro, porque quando penso nisso vejo-a a ela, sozinha, desamparada, e aquela sensação de culpa que surge sempre associada à felicidade esmaga-me. É isso pai, como posso perdoar-te se agora, sempre que me sinto feliz, me sinto imediatamente culpada por estar feliz?
Estou cansada de dar importância a isto, de dar relevância, de sentir que nossas vidas giram sempre em torno disto e nunca saem deste ciclo. Gira o disco, toca o mesmo. Até escrever sobre isto me começa a saturar. Odeio este papel de vítima, de oprimida. Odeio multiplicar o negativismo, a dor, a desesperança. Mas quando tento furar caminho e abrir novos horizontes, a realidade cai-me em cima com força. E dói.
Pai, não sei o que mais te dizer. Acho que já disse tanto, creio que até já terei dito coisas que me arrependerei de ter dito. Porque apesar de tudo serás sempre meu pai, eu serei sempre tua filha e nunca deixarei de gostar de ti. Ou de me preocupar. Ainda que, pela forma como te trato, possas pensar o oposto. Tenta compreender que estou a tentar organizar tudo na minha cabeça e, mais importante, no meu coração. O golpe foi grande, duro e profundo. Dá-me tempo e espaço para cicatrizar esta ferida que ainda está aberta e arde. 

21
Nov19

uma metáfora

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Chega ao fim o desafio de 30 dias de escrita e termina de forma grandiosa: uma metáfora para a vida. Gostava, sinceramente, de escrever um texto à altura do desafio proposto para este último dia, mas receio que tal não vá acontecer. Por isso, vou apenas escrever aquilo que me vai na alma e me passou pela cabeça quando li o que era pedido para o 30º dia. 

Life is a gift. Experience is the beauty.

Esta deverá ser a metáfora mais fraquinha da história em termos literários, mas em termos práticos e reais é, para mim, a mais poderosa. Não sei se ando a atravessar uma espécie de crise existencial ou coisa parecida, mas penso frequentemente na vida. No milagre que tudo isto é. Sim, já vos tinha dito que eu faço parte da equipa de gente que o vê tudo como um milagre. Não interpretem estas palavras como uma questão religiosa, porque não é disso que se trata. Quando digo que concebo tudo como um milagre, é porque quando olho em meu redor só consigo ver beleza e genialidade. A natureza, o corpo humano, o tempo, o espaço, a música, a literatura, a mente humana, tudo é de uma enorme beleza. Funciona tudo a um ritmo tão coordenado e tão exato, tudo parece ter um sentido tão bem pensado e construído, que só pode ser um milagre. Olho para a vida desta forma: a vida é um milagre autêntico. A evolução que nos trouxe aos dias de hoje, tudo o que já passou, a quantidade de seres (humanos e não só) que já pisaram este mesmo chão que hoje nós temos a oportunidade de pisar, os planetas, o sol, o universo são a prova de que estarmos aqui hoje é uma dádiva. 

Sabem, quando era pequena, tinha constantemente um pensamento sobre o milagre que era viver. Eu sentia-me imensamente sortuda por ter nascido humana, acreditava que tinha sido o meu grande golpe de sorte. Porque no meu imaginário, eu poderia ter nascido planta, candeeiro, televisão, girafa. Eu achava que me tinha sido atribuído o direito de nascer pessoa, enquanto a outros tinha sido atribuído o formato objeto, a outros o formato animal e etc. Por isso, já nessa altura, a vida me parecia uma autêntica bênção. Eu fazia parte do melhor grupo: era pessoa! Além de que, não só era pessoa, como tinha nascido num país seguro, com condições, e numa família que me amava e fazia tudo para me ver bem. Quantas e quantas vezes não dei comigo a pensar que raio de sorte me tinha atingido para ter nascido no sítio, forma e jeito certo? 

Por isso, sim, eu acredito em milagres. E acredito no maior deles todos: esta vida maravilhosa que nos foi dada a oportunidade de viver. Por pior que seja a fase que estejamos a vivenciar, nunca mas nunca mesmo nos podemos esquecer de que, pelo menos, estamos vivos e que não há nada melhor do que estar vivo. Essa é a maior oportunidade que alguma vez nos poderá ser dada. Há dias cruzei-me com uma frase que, em traços gerais, dizia: há sempre um novo amor, um novo emprego, um novo amigo, só não há uma nova vida. Isto fez fricção dentro de mim por ser incrivelmente verdadeiro. Temos o direito e dever de fazer desta vida uma vida estupenda! 

A beleza da vida é a experiência. Não sejamos ingénuos: há momentos muito duros. Há acontecimentos que nos arrombam e derrubam, como se a vida nos estivesse a assaltar à mão armada e não conseguíssemos fazer mais do que nos rendermos e tentarmos recuperar o fôlego. Da mesma forma que há momentos de uma beleza e magia imensas. Que nos fazem transbordar de alegria, tanto que nos sentimos pequenos para o tamanho que a nossa felicidade ocupa. E, porque não são menos importantes, existem os momentos de serenidade, em que nada de destrutivo ou incrível acontece, mas nos é permitido estar em paz e usufruir dos pequenos milagres diários. É esta mistura ora assustadora, ora mágica, ora pacífica que dá sabor e tempero à vida. Que lhe dá sentido. 

Não sei se o que escrevi fará algum sentido ou se será uma representação aproximada e fiel do que sinto em relação a viver, mas a mensagem é muito simples. Quanto mais penso nisto que é viver, mais agradecida me sinto por cá estar. Gosto verdadeiramente de viver e é por isso que esta é a minha metáfora marcante. A cada dia que acordo, sinto que me foi dado um presente: viver!

20
Nov19

donos da verdade e da razão

girl

Há muitas coisas neste mundo que me aborrecem. Tento não escrever sobre elas para não lhes dar importância nem deixar que o negativismo me contamine, mas a vida não são só coisas boas e positivas e escrever sobre as coisas que me aborrecem é tão legítimo como escrever sobre as que me alegram. Além disso, há coisas que me trespassam o coração de tal forma que preciso mesmo de escrever sobre elas para as expulsar do meu organismo. E se podia criar uma série dedicada a coisas que me tiram do sério, o primeiro episódio tem de ser obrigatoriamente sobre a facilidade com que as pessoas julgam os outros.
Ah, que coisa mais desprezível, mais tudo! Ok, deixem-me acalmar e reformular a minha perspetiva. Não me considero nenhuma santa imaculada que nunca faz juízos de valor. Pelo contrário, faço, porque sou humana e a nossa espécie foi concebida de forma a organizar todos os elementos do seu ambiente em gavetas, com rótulos e etiquetas. Isto é bom, isto é mau, isto é feio, isto é bonito, etc e etc. É a nossa natureza e, como tal, estes pensamentos disparam a alta velocidade como se tivessem vontade própria. No entanto, precisamente por sermos seres racionais e dotados de raciocínio lógico e sermos capazes de pensar acerca do nosso próprio pensamento (coisa que mais nenhuma espécie é capaz de fazer), temos a capacidade de gerir estes juízos de valor. De os questionar, por em cheque e, em última instância, de os ignorar e deixar de lado. Resumidamente: lá por os julgamentos serem como cogumelos, que nascem em tudo que é lado, não significa que todos sejam comestíveis. Pelo contrário: não só nem todos o são como alguns podem ser de tal forma venenosos, que podem acabar em fatalidade.
Já fui uma pessoa muito mais julgadora e com uma opinião sobre tudo e todos do que sou hoje. Aliás, acho que hoje sou o oposto, sinto muita dificuldade em cair em juízos de valor imediatos, sem tentar compreender primeiro toda a situação e as suas diferentes perspetivas.

Quando descobrimos a verdade sobre o que se estava a passar cá em casa, uma das minhas maiores questões foi "como é que eu vou trabalhar amanhã e agir como se o meu mundo não tivesse acabado de desabar?". Eu sei, no meio de tanta coisa interessante e complexa para desvendar, ali estava eu preocupada em esconder o que estava a sentir, mas a verdade é que queria manter-me profissional e não queria, nem por um segundo, desabar em pleno escritório e ter de contar o que se estava a passar. O dia seguinte, em que fui efetivamente trabalhar, foi dos mais difíceis que já tive de enfrentar. Recordo-me de ligar ao meu namorado à hora de almoço e dizer "ok, já aguentei 4 horas, já só faltam outras 4, está quase" e de me sentir à beira do abismo. O dia passou e a máscara colou de tal forma, que os dias seguintes foram mas fáceis e à medida que o tempo foi passado, acabei por usar o local de trabalho como um escape, sendo o ambiente em que poderia estar liberta das preocupações familiares e dedicar-me a outro tipo de assuntos. Claro que nunca consegui a 100% desligar-me da esfera familiar, mas o trabalho foi um bom distrator, não posso negar. Mas onde quero chegar é que passou um ano e ninguém, olhando para mim, consegue imaginar o que se passou e se continua a passar na minha vida. A representação é tão perfeita, que se eu decidisse agora contar toda a verdade, a maioria das pessoas não acreditaria e as restantes pensariam que eu lidei com o assunto muito bem, tal a minha aparente tranquilidade. O que significa que nós nunca imaginamos o que vai na vida de cada pessoa com quem nos cruzamos. Não sabemos rigorosamente nada a não ser o que as pessoas nos querem mostrar. Assim como não sabemos como foi o seu percurso até ao momento atual em que se encontram, quais foram as suas adversidades, as suas perdas, as suas estratégias e ferramentas para lidar com elas. Deste modo, questiono: temos direito de julgar alguém?  Pelo menos, sem nos certificarmos primeiro de que estamos na posse da quantidade de informação razoável para tecermos um juízo de valor minimamente acertado?
Cada vez que ouço alguém, cheio de si, pregar acerca da vida dos outros, sinto o estômago apertar-se. Só me apetece gritar e questionar "mas que raio sabes tu acerca dessa pessoa e da sua vida?". A falta de compaixão torna-se cada vez mais óbvia à medida que vamos crescendo, o que não faz qualquer sentido, deveria ser o oposto. Com o avançar da idade pressupõe-se que vivenciamos cada vez mais situações e, se não vivenciamos, vemos os que nos rodeiam vivenciar e aprendemos por observação. Essa experiência deveria ser a base, o ponto de partida para sabermos que nem tudo o que parece é, para darmos o benefício da dúvida mais vezes e não nos lançarmos logo em conclusões precipitadas e, frequentemente, erradas.
Não sei se é por, pela primeira vez, ter estado do outro lado da barricada e saber o que é aparentar viver uma vida que não é real, mas custa-me engolir este tipo de pessoas. Torno a repetir: todos julgamos, faz parte da nossa natureza, mas não podemos ser ingénuos e acreditar em todos os julgamentos que despontam na nossa cabeça.

Esse é sempre o caminho mais fácil, mas não é, de todo, o que pretendo seguir. Não sou a melhor pessoa do mundo nem candidata ao prémio Nobel da paz, mas recuso-me a cair nas armadilhas da minha mente. E não sou parva: sei que ao escrever isto estou, de certo modo, a julgar todas as pessoas que julgam. O que pode tornar o meu ponto de vista contraditório, mas em prefiro pensar da seguinte forma: este é um juízo de valor que faço deliberada e conscientemente. Não conheço todas as pessoas do mundo, nem as suas histórias e muito menos conheço os motivos que as levam a julgar sem freio, mas na maioria das situações com que me deparo resume-se a falta de compaixão e de informação. E falta de interesse também, porque é sempre mais fácil cair num juízo errado do que colocar as coisas em perspetiva. Isso envolve esforço, requer empatia e a capacidade de perceber que somos todos muito mais complexos do que queremos assumir ser.

É sempre mais fácil espalhar ódio e assumir o papel de donos da verdade. Nem quero entrar pelo caminho do que se passa nas redes sociais, porque isso é matéria-prima para outro capítulo desta série. Só quero passar a seguinte mensagem: se usássemos a mesma energia que usamos para julgar e pregar para nos compreendermos uns aos outros, a nossa vida era bem melhor. 

19
Nov19

um beijo de amor

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Estava uma noite invernosa, com direito a chuva e temperaturas negativas. Ela vestia várias camadas de roupa, perdendo-se no meio de tanto tecido. Por mais que desejasse estar bonita e atraente (e desejava), sabia que estava muito frio e entre ter frio e brio, ela preferia não ter o primeiro. Iria encontrar-se com ele e com o resto do grupo de amigos, afinal era uma noite de festa. Estava ansiosa, sabia que algo ia acontecer, só não sabia como e quando.
Quando se encontraram, pareciam dois miúdos sem jeito. Pareciam não, na verdade, era mesmo isso que eles eram. Dois adolescentes apaixonados e envergonhados perante um sentimento desconhecido até então. Ele puxou-a para ir consigo, afastando-se do grupo e ela foi, dando-lhe a mão pelo meio da confusão. Não fazia ideia para onde a levava, mas não ficou preocupada. Confiava nele, sentia-se segura e, naquele momento, a excitação do que poderia acontecer era tanta que não dava espaço para nenhum receio ou medo.
Chegaram a um parque e começou a chover. Correram para um escorrega para se abrigarem, aninhando-se um no outro. Aquela proximidade toda fê-la sentir vontade de sair das centenas de camadas de roupa que trazia vestidas, tal era o calor que sentia. Ele parecia-lhe nervoso, o que a deixou tranquila, pois sabia que não era a única que antecipava aquele momento. Tornaram a correr para um local maior e mais abrigado, acabando por ficar frente a frente. Naquele momento, ela soube o que iria acontecer e não conseguiu deixar de esboçar um sorriso.
Ele, que quando está nervoso adota uma expressão ainda mais séria do que o habitual, foi ao encontro dela e encostou-a à parede, envolvendo a nunca dela com as suas mãos. Ela sentiu o calor da respiração dele cada vez mais próximo de si, até que fechou os olhos, pois aquela visão era demais para observar. Ela queria sentir aquele momento em pleno e só o poderia fazer entregando-se completamente e abdicando de qualquer tentativa de controlo.
Ele beijou-a. Apressado, sôfrego, como se estivesse à espera daquele momento há muito tempo. Ela retribuiu, a medo, não por não desejar o mesmo, sabe deus a quantidade de vezes que ela já tinha imaginado naquele momento na sua mente, mas por nunca o ter feito antes. Aquele era o seu primeiro beijo. Guardara-o para alguém especial, lutando contra todos os pensamentos mesquinhos que lhe diziam que ela já o devia ter feito há mais tempo e que iria ficar para trás em comparação com as suas amigas. Soube naquele instante que tomara a decisão certa, a de esperar. Porque aquele beijo certamente não fora perfeito, mas tinha sido com a pessoa perfeita.
Será que foi um beijo de amor? Naquela altura, amor parecia um sentimento muito forte e maduro. Paixão talvez fosse a palavra mais acertada. Ou desejo. Mas a verdade é que aquele foi o primeiro de muitos beijos, beijos estes que se, no início não eram, rapidamente se transformaram em beijos de amor. 

19
Nov19

numb

girl

"People often mistake numbness for nothingness, but numbness isn’t the absence of feelings; it’s a response to being overwhelmed by too many feelings." - Lori Gottlieb

 

É exatamente assim que me sinto a maior parte do tempo em relação ao que nos aconteceu. Anestesiada, adormecida, dormente. E quando não me sinto assim, sinto-me excessivamente zangada, como se uma fúria incontrolável e desmedida se apoderasse de mim, reagindo intempestivamente e exageradamente às situações. Racionalmente, sei que não há motivo para uma resposta tão exacerbada, mas emocionalmente é a única forma que encontro de reagir. E sei que este excesso está diretamente relacionado com o défice de outras emoções. Ou melhor, com o défice da sua expressão.
Porque quando penso nesta situação e no núcleo de pessoas que tem conhecimento sobre ela, à exceção de familiares, são apenas duas. E apenas com uma delas consigo realmente expressar as minhas emoções. Com a outra, apenas falo sobre o assunto, mas com um distanciamento tão grande que até parece que estou a falar de uma coisa na qual não estou envolvida. Gosto dessas conversas, porque me permitem pensar no assunto em voz alta e criar novas perspetivas, mas isso não é o que preciso. Não preciso de vestir novamente a capa de super heroína, como se isto não me afetasse como me afeta. Não preciso de usar sempre a carta da racionalidade e fazer-me de forte. Mas é o que acontece quase sempre.
Menos com ele. Com ele desabo e quando quero encontrar palavras para explicar o que sinto, não consigo. É como se qualquer pingo de lógica me abandonasse e não tenho qualquer oportunidade para me fazer de forte. Quando torno a mim, já estou envolvida nos seus braços, num abraço apertado e quente, que me sufoca qualquer tentativa de explicação. Na verdade, ele não precisa de explicações, ele está a par de todos os detalhes, mesmo os mais sórdidos e inacreditáveis. Ele não precisa de ouvir vezes e vezes sem conta o que esta situação me provoca, mas precisa de o ver. De testemunhar como isto me destruiu e de como ainda estou a tentar recolher todas as peças que outrora formavam a pessoa que eu era. Ele precisa disso. E eu também.
Sobretudo eu. Eu preciso de chorar, gritar, dizer asneiras, rasgar coisas, parti-las, o que for. Neste momento, sinto-me zangada. Muito zangada com tudo isto. Furiosa. Há momentos em que me sinto asfixiada pela forma como me sinto furiosa. Sobretudo quando tentam invadir o meu espaço. Ele já é tão reduzido e, ainda assim, tentam penetrar nessa bolha só minha, sem qualquer pedido ou cedência de autorização. Disse-vos que acordo sempre mais cedo do que a hora de que realmente preciso. Faço-o por todos os motivos que enumerei, mas não vos disse o principal: faço-o porque a essa hora ninguém que habita naquela casa está acordado para me chatear. Posso ser só eu e os meus pensamentos. Não há ninguém à minha volta, não há ninguém a dirigir-me perguntas essencialmente estúpidas às quais não tenho qualquer vontade nem paciência para responder. 

Porque depois das minhas explosões de fúria, segue-se a culpa. A sensação de que não tenho qualquer direito de reagir da forma como reajo. Esta é uma das principais características da minha baixa autoestima: achar sempre que não tenho direito a nada. Questiono-me sempre que direito tenho eu de ficar chateada, de me mostrar furiosa, de me expressar completamente. É como se não me autorizasse a expressar, porque sinto que não o mereço. É a coisa mais estúpida do mundo, eu sei, acreditem que sei. Trabalho nisto diariamente, mas nenhuma mudança é do dia para a noite. Expressar-me sem receios entra na categoria de ser vulnerável e isso é algo que só me permito ser com um número muito reduzido de pessoas. Os escolhidos. E mesmo com estes, nunca deixo de me perguntar: será que tenho direito?

A sensação de que os meus sentimentos podem invadir o espaço dos outros acompanha-me desde sempre. Porque eu sei que a maioria das pessoas não sabe lidar com os sentimentos dos outros nem com a sua manifestação. Eu, por outro lado, não tenho qualquer problema com isso. Sempre estive muito tranquila e recetiva a todo o tipo de reação e, confiem no que vos digo, é por ser assim que a maior parte das pessoas diz sentir-se bem comigo. Porque as sei colocar confortáveis de forma a que não sintam qualquer receio em serem elas mesmas e se expressarem. Mas, e isto vai ser um grande contrassenso, só sei ser assim para os outros, porque sei a dificuldade que sinto em fazê-lo! Por saber como é difícil para mim me abrir, revelar o que sinto, sentir-me confortável para o fazer é que sei criar as condições para que os outros o façam comigo. No entanto, quando é a minha vez de ficar do outro lado, hesito. Sei que não sou fraca nem frágil por chorar, por exemplo, mas por algum motivo não sou capaz de o fazer. Não porque seja forte, pelo contrário, considero-me patética e cobarde, porque sermos vulneráveis é um ato de coragem. Pelo menos, para mim é. 

Quando penso nesta situação merdosa em que o meu pai nos colocou e tento extrair as aprendizagens, quando tento ver o copo meio cheio, penso que esta situação pode ser o catalisador da minha mudança. Pode ser o estímulo que me faltava para começar a fustigar algumas crenças puramente irracionais e para me abrir. Para ser eu sem medos, sem "e se". 

Há pessoas que gostam de se sentir dormentes. Eu tenho medo desta anestesia emocional, sei que não é saudável. Sobretudo nos momentos em que tudo acontece muito rápido e dispara dentro de mim. Não estou em equilíbrio, mas sei que só estarei quando me permitir sentir tudo que há para sentir. À revolta e fúria posso fazer "check", mas ainda falta a pior e maior delas todas: a tristeza. 

 

 

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