Estou a começar a escrever este post e, curiosamente, toca a música "Something has broken" dos Fingertips numa lista automática qualquer do YouTube. Curioso porque é exatamente assim que me sinto, como se algo em mim se tivesse quebrado, de uma forma quase irremediável e desconcertante.
Não sei como escrever sobre isto. Não consigo escolher as palavras certas, porque não existem, em lado nenhum, palavras capazes de traduzir tudo o que aconteceu dentro de mim quando descobrimos que o meu pai estava a ter um caso com outra pessoa que não a minha mãe. Foi um daqueles momentos na vida em que num simples segundo tudo se transforma e sabemos que não podemos recuperar a vida tal como ela era antes dessa descoberta. Eu já tinha passado por alguns momentos assim, como quando a minha avó morreu. Assim que entro em casa e descubro que ela já não estava connosco, soube que a vida jamais seria a mesma. Nesse dia, em que descobrimos a verdade, naquele preciso momento em que recebo a notícia, soube-o de imediato: a minha vida ia mudar e jamais voltaria a ser como era. Eu, pelo menos, não seria a mesma pessoa.
Nessa noite, dormir foi quase impossível. Lembro-me da velocidade a que corriam os pensamentos na minha mente: tão rápidos, tão intensos, que parecia que iam soltar-se da minha cabeça e começar a correr à minha frente, no meu quarto. Tentava responder a tantas questões, mas a que mais gritava era sobre como seria o nosso futuro. O que iria acontecer-nos? A agonia instalada no meu coração era tanta, que pensei que os outros a conseguissem ver sobressair no meu peito.
Esse foi um dos dias mais difíceis de toda a minha vida. Ir trabalhar, agir como se estivesse tudo igual, quando tudo dentro de mim estava virado do avesso. Sorrir quando por dentro me doía cada pedaço do meu corpo de tanto o contrair para não chorar. Medo de desabar, de abrir as comportas das minhas emoções e ser incapaz de as tornar a fechar. Medo por saber que tudo aquilo era real e que, de alguma forma, teríamos de arranjar forma de lidar com a verdade.
Depois desse dia, seguiram-se muitos outros dias maus. Invariáveis conversas entre família, a tentar compreender o que se tinha passado, entre gritos, choro, revolta, mágoa, desespero, medo, raiva, desilusão, perda. Deixem-me dizer-vos uma coisa que aprendi quando acontece uma coisa desta dimensão: a nossa reação dificilmente corresponde ao que acharíamos que seria. Jamais na minha vida pensei que iria reagir com tanta calma, com tanto autocontrolo, com tanta contenção nas palavras e nos atos. Mas a verdade é que quando o mundo nos cai em cima, é muito fácil desintegrarmo-nos e deixarmos de nos reconhecer. Para o bem e para o mal.
O mais difícil foi ver a minha mãe desintegrar-se em milhões de fragmentos. Eu e a minha irmã tentamos apanhar cada pedacinho seu e tornar a juntar, como se se tratasse de um puzzle. Mas não valeu a pena o esforço, porque a minha mãe já não era mais a pessoa que nós conhecíamos. Aqueles pedacinhos todos juntos não nos traziam a nossa mãe de volta.
E foi assim que os papéis se inverteram: de filha para mãe. Ali estava ela, ali estava eu, numa nova dinâmica relacional. Ela precisava de colo, de proteção, de segurança. Era como se lhe tivessem tirado o chão dos pés e o ar para respirar. Então ela passou a ser a minha prioridade. A ocupar o meu pensamento a todos os instantes: como será que está? Estará sozinha? Estará a chorar? Aproveitar a vida tornou-se muito difícil, porque de cada vez que eu me estava a tentar divertir, a imagem da minha mãe, sozinha, pequena, perdida, aparecia na minha mente e eu sentia-me culpada. Culpada por estar a sorrir, a rir-me, a viver quando ela se esforçava, dia após dia, para se manter à tona da existência. Eu sentia-me na obrigação de ser empática, de me colocar sempre na sua posição e de lutar para a tirar daquele lugar escuro e sombrio onde ela estava escondida.
Essa é, talvez, a única coisa que não sou capaz de perdoar ao meu pai. Posso perdoar-lhe o deslize, a vontade de ser novamente feliz, o ter-se apaixonado por outra pessoa. Posso perdoar a sua humanidade, a sua imperfeição, os seus erros, porque todos os cometemos. Mas não sei se serei capaz de lhe perdoar o facto de que, para ele ir atrás da sua felicidade, nos deixou com uma enorme responsabilidade. Não sei se conseguirei perdoar o seu egoísmo. Todos os momentos que perdi por me sentir demasiado culpada para usufruir. Uma culpa que, racionalmente, sei que não me pertence. Não fui eu que falhei. Mas, por algum motivo irracional, não consigo suportar a ideia de ser feliz num mundo em que a minha mãe esteja tão triste. Rouba-me qualquer vontade de sorrir.
A vida está cheia de momentos bons, esplêndidos e outros menos bons, quase destrutivos. Penso muitas vezes que histórias como a minha acontecem todos os dias a pessoas inocentes como eu. Em vez de me perguntar "porquê a mim?", prefiro questionar "porque não a mim?". Porque não estamos protegidos. Cada um de nós está, a cada instante, a ser posto à prova. Viver é mesmo assim. Nem todos os dias podem ser bons e, garantidamente, nem todos os dias são maus. Até há dois anos, eu sentia-me protegida por uma redoma: a da minha família. Sabia que a vida nos iria testar, já o tinha visto acontecer antes, mas sentia que, por muito má que a vida se transformasse, nos teríamos uns aos outros. Porque era assim que eu nos via: unidos, mais fortes juntos do que cada um em separado.
Essa foi a parte de mim que se quebrou. A ideia de que fazia parte de uma cápsula de vidro resistente a qualquer força. A minha família era a minha bolha protetora neste mundo caótico. Quando o meu pai fez esta bolha estourar, ficamos todos mais vulneráveis, mais pobres, mais frágeis. Expostos a qualquer tipo de mal, sem proteção a não ser nós mesmos. Perdeu-se a inocência, a leveza, a sensação de liberdade. Partiram-me a partir do momento que destruíram o alicerce base do meu ser: a família.
É a primeira vez que me sento para escrever sobre isto. Como já referi algumas vezes, sou incapaz de pedir ajuda e de abrir. Acredito que falar disto com amigos me faria bem, nem que fosse por me fazer sentir mais leve, mas não o consigo fazer. Guardo tudo para mim e, às tantas, todas as emoções se misturam e confundem-se.
Ultimamente sinto-me muito zangada. Tenho tanta raiva dentro de mim. Sei que está a pulsar dentro de mim porque há muita coisa que preciso de processar. Nesta jornada de ser mãe em vez de filha, perdi o meu espaço e tempo para organizar os acontecimentos na minha cabeça. Afinal, sou parte integrante da história. Naquele dia em tudo veio ao de cima, a minha vida como a conhecia até então, deixou de existir. E ainda não lhe fiz o luto. Ainda não me permiti viver cada emoção que tenho pendente, seja em relação ao que se perdeu, seja em relação ao que se transformou. Sobretudo tenho emoções muito díspares em relação ao meu pai e isso afeta a nossa relação todos os dias. Espero que a escrita me permita organizar alguns destes sentimentos, sobretudo agora que me permiti escrever sobre eles pela primeira vez.